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terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Resenha 1- Legado Mortal

Legado Mortal é o 4° livro de uma série.
Não precisa ler a série pra entender cada um, cada um é complementar da série, mas independente ao mesmo tempo.
É um livro de thriller/conspiração sobre uma mulher Cotten Stone, uma repórter conceituada que é chamada por um moribundo sangrando pelo corpo todo que apenas diz "Agulhas Negras".
Ela não sabe se é um código, um nome, um delírio que viria a significar nada... etc.
Mas com casos espalhados pelo EUA, ela descobre uma incrível trama que mistura, Coréia do Norte, 2ª Guerra Mundial, Guerra Biológica, Anjos, Demônios, Nephilims, Vampiros e etc.
É um roteiro não-linear, pega várias histórias separadas e aos poucos vão se ligando se tornando uma só. Tem capítulos pequenos, que se tratando de uma história não-linear pode se tornar chato ou confuso para os leigos desse tipo de leitura.
Mas os capítulos são muito bem escritos, o que faz a história passar extremamente rápido.
PORÉM, nem tudo são flores.
O livro em si tem 2 problemas. O primeiro é que a tradução foi feita por um nó-cego que escreveu muitas bobagens como HIROXIMA, NAGASÁQUI, BRAM STOKLER E QUE SEUL É NA CORÉIA DO SUL. E o segundo problema é que por ter capítulos curtos, não funciona aquele história com seus pais quando está tarde de dizer :
-Só mais um capítulo.
Pois o capítulo acabará em 2 minutos e a graça acaba.
Enfim, o pique Dan Brown com um toque sobrenatural é incrível, super recomendo.
 Se você tiver um dinheiro a mais e muito amor no coração, compre os outros 3 livros da série pra mim.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Jogos Vorazes parte 2 de 3

Por um momento, as câmeras focam nos olhos abatidos de Peeta enquanto o que ele diz afunda. Então posso ver meu rosto, a boca meio aberta numa mistura de surpresa e protesto, ampliada em todas as telas enquanto eu percebo. Eu! Ele quer dizer eu! Junto meus lábios e fito o chão, esperando que isso oculte as emoções que começam a ferver dentro de mim.
— Oh, isso é que é má sorte  diz Caesar, e há uma ponta real de dor na sua voz.
A multidão está murmurando de acordo, uns poucos dando gritinhos agonizantes.
— Não é bom  concorda Peeta.
— Bem, eu não acho que algum de nós pode te culpar. É difícil não se apaixonar por essa jovem dama  diz Ceasar. — Ela não sabia?
Peeta balança a cabeça.
— Não até agora.
Eu deixo meus olhos fitarem a tela por tempo suficiente para ver que o rubor nas minhas bochechas é claro.
— Vocês não amariam puxá-la de volta para cá e conseguir uma resposta?  Ceasar pergunta à audiência.
A multidão grita concordando.
— Tristemente, regras são regras, e o tempo de Katniss Everdeen acabou. Bem, sorte para você, Peeta Mellark, e acho que falo por toda a Panem quando eu digo que nosso coração vai com você.
O rugido da multidão é ensurdecedor. Peeta tem absolutamente apagado o resto de nós do mapa com sua declaração de amor por mim. Quando a audiência finalmente se aquieta, ele sufoca um calmo “Obrigado” e retorna à sua cadeira.
Nós ficamos de pé para o hino. Eu tenho que levantar minha cabeça por respeito obrigatório e não posso fugir de ver que todas as telas estão agora dominadas pelas imagens de Peeta e eu, separados por poucos passos que nas cabeças dos observadores não podem ser violados. Pobre de nós.
Mas eu sei melhor.
Depois do hino, os tributos voltam em fila para o salão do Centro de Treinamento e para os elevadores. Eu tenho a certeza de entrar num elevador que não tem Peeta. A multidão retarda nossas comitivas de estilistas e orientadores e acompanhantes, então nós temos apenas uns aos outros como companhia. Ninguém fala. Meu elevador para e quatro tributos descem antes de eu estar sozinha e então acho a porta abrindo no décimo segundo andar.
Peeta tinha acabado de sair do seu elevador quando eu bato minhas palmas no seu peito. Ele perde o equilíbrio e colide em um vaso feio cheio de flores falsas. O vaso se inclina e quebra-se em centenas de pequenos pedaços. Peeta cai nos cacos, e sangue imediatamente flui de suas mãos.
— O que foi isso?  ele pergunta, perplexo.
— Você não tinha nenhum direito! Nenhum direito de dizer aquelas coisas sobre mim! grito para ele.
Agora os elevadores se abrem e todo o grupo está lá, Effie, Haymitch, Cinna, e Portia.
— O que está acontecendo?  diz Effie, uma nota de histeria em sua voz. — Você caiu?
— Depois que ela me empurrou  Peeta responde enquanto Effie e Cinna o ajudam a se levantar.
Haymitch se vira para mim.
— Você o empurrou?
— Isso foi ideia sua, não foi? Tornar-me algum tipo de idiota na frente de todo o país?— replico.
— Foi ideia minha  Peeta responde, recuando enquanto ele puxa os pedaços de cerâmica de suas palmas. — Haymitch só me ajudou.
— Sim, Haymitch é muito útil. Para você! — eu digo.
— Você é uma tola  Haymitch diz com desgosto. — Acha que ele te prejudicou? Aquele garoto só deu a você algo que você nunca poderia conseguir sozinha.
— Ele me fez parecer fraca!
— Ele fez você parecer desejável! E vamos encarar, você pode usar toda a ajuda que conseguir nesse departamento. Você era tão romântica quanto lixo até ele dizer que queria você. Agora todos eles querem. Você é tudo sobre o que eles estão falando. “Os desafortunados amantes do Distrito Doze!” diz Haymitch.
— Mas nós não somos amantes desafortunados!
Haymitch agarra meus ombros e me prende contra a parede.
— Quem se importa? É tudo um grande show. É tudo como você é percebida. O máximo que eu poderia dizer sobre você depois da sua entrevista era que você estava boa o bastante, embora isso em si seja um pequeno milagre. Agora eu posso dizer que você é uma arrasa-corações. Oh, oh, oh, como os garotos de volta para casa caem saudosamente aos seus pés. O que você pensa que vai te conseguir mais patrocinadores?
O cheiro de vinho do seu hálito me deixa tonta. Empurro suas mãos dos meus ombros e me afasto, tentando limpar minha cabeça.
Cinna se aproxima e coloca seus braços ao meu redor.
— Ele está certo, Katniss.
Eu não sei o que pensar.
— Eu deveria ter sido informada, então não pareceria tão estúpida.
— Não, sua reação estava perfeita. Se você soubesse, não seria tão real — diz Portia.
— Ela só está preocupada com o namorado dela Peeta diz bruscamente, jogando fora um pedaço do vaso manchada de sangue.
Minhas bochechas queimam de novo ao pensar em Gale.
— Eu não tenho um namorado.
— Que seja  Peeta responde. — Mas eu aposto que ele é esperto o bastante para reconhecer um blefe quando o vê. Além disso, você não disse que me amava. Então o que importa?
As palavras estão penetrando. Minha raiva sumindo. Eu estou rasgada agora entre pensar que eu estava sendo usada e pensar que eu estava tendo uma vantagem. Haymitch está certo. Eu sobrevivi à entrevista, mas o que eu era realmente?
Uma garota boba girando num vestido cintilante. Dando risadinhas. O único momento substancial foi quando falei sobre Prim. Compare isso com Thresh, seu silêncio, seu poder mortal e eu sou esquecível. Boba, brilhante e esquecível. Não, não inteiramente esquecível, tenho meu onze do treino.
Mas agora Peeta fez de mim um objeto de amor. Não só dele. Ouviram-no dizer que eu tenho muitos admiradores. E se a audiência realmente pensa que nós estamos apaixonados... lembro o quão forte eles responderam a sua confissão. Amantes desafortunados. Haymitch está certo, eles engolem essas coisas na Capital. De repente me preocupo se eu não reagi direito.
— Depois de ele dizer que me amava, você achou que eu poderia estar apaixonada por ele, também?  pergunto.
— Eu achei  diz Portia. — O modo como você fugiu olhar para as câmeras, o rubor.
Os outros gritam, concordando.
— Você é ouro, querida. Vai ter patrocinadores se enfileirando ao redor do bloco  diz Haymitch.
Estou embaraçada com a minha reação. Eu me forço a admitir Peeta.
— Sinto muito por te empurrar.
— Não tem problema  ele encolhe os ombros. — Embora isso seja tecnicamente ilegal.
— Suas mãos estão bem?  pergunto.
— Elas ficarão bem  ele diz.
No silêncio que se seguiu, o cheiro delicioso do nosso jantar flutua do hall.
— Vamos lá, vamos comer  diz Haymitch.
Todos nós o seguimos para a mesa e pegamos nossos pratos. Mas então Peeta está sangrando tanto que Portia o leva para tratamento médico. Nós começamos a cremosa sopa rose-petal sem eles. Na hora que terminamos, eles chegam. As mãos de Peeta estão cobertas de ataduras. Eu não posso evitar sentir-me culpada. Amanhã nós estaremos na arena. Ele tinha feito um favor para mim e eu tinha respondido a ele com agressão. Eu nunca vou parar de dever a ele?
Depois do jantar, assistimos a gravação na sala de estar. Eu parecia enfeitada e superficial, girando e rindo no meu vestido, embora os outros me assegurassem de que eu era charmosa.
Peeta na verdade é charmoso e totalmente cativante como o garoto apaixonado. E lá estava eu, ruborizando e confusa, bonita pelas mãos de Cinna, desejável pela confissão de Peeta, trágica pelas circunstâncias, e por tudo isso, inesquecível.
Quando o hino termina e a tela fica preta, um silêncio cai no cômodo. Amanhã ao amanhecer, nós seremos despertados e preparados para a arena. Os reais Jogos não começam até as dez porque muitos dos residentes da Capital levantam tarde. Mas Peeta e eu temos que fazer um começo mais cedo. Não tem como dizer o quão longe nós viajaremos para a arena que foi preparada para os Jogos esse ano.
Sei que Haymitch e Effie não irão conosco. Tão breve eles partirem daqui, eles estarão no Posto de Comando dos Jogos, esperando loucamente inscrever nossos patrocinadores, trabalhando uma estratégia de como e quando nos mandar os presentes. Cinna e Portia viajarão conosco para o mesmo lugar onde seremos lançados na arena. Ainda as despedidas finais devem ser ditas aqui.
Effie toma nós dois pela mão e, com lágrimas de verdade em seus olhos, nos deseja sorte. Agradece-nos por sermos os melhores tributos que ela já teve o privilégio de apadrinhar. E então, porque é Effie, e ela aparentemente é obrigada por alguma lei a dizer algo terrível, ela acrescenta:
— Eu não estaria nem um pouco surpresa se eu finalmente for promovida para um distrito decente no próximo ano!
Então ela nos beija nas bochechas e sai apressada, por causa da despedida emocional ou pela possível melhora em seu destino.
Haymitch cruza os braços e olha para nós.
— Alguma palavra final como conselho?  pergunta Peeta.
— Quando o gongo soar, caiam fora de lá. Vocês nem serão vocês até o banho de sangue na Cornucópia. Só para deixar claro, ponham o máximo de distância possível entre vocês e os outros, e encontrem uma fonte de água. Entenderam?
— E depois disso?  pergunto.
— Fiquem vivos.
É o mesmo conselho que ele nos deu no trem, mas ele não está bêbado e rindo dessa vez. E nós apenas acenamos. O que há mais para dizer?
Quando vou ao meu quarto, Peeta demora-se para conversar com Portia. Estou satisfeita. Quaisquer palavras de despedidas para nós trocarmos podem esperar até amanhã.
Meus cobertores estão esticados de novo, mas não há sinal da garota Avox de cabelos vermelhos. Queria saber o nome dela. Devia ter perguntado. Ela podia escrever, talvez. Ou representá-lo. Mas talvez aquilo apenas resultaria em uma punição para ela.
Tomo banho e lavo a cor dourada, a maquiagem, o odor de beleza do meu corpo. Tudo o que resta dos esforços da equipe de preparo são as chamas nas minhas unhas. Decido mantê-las para lembrar a audiência quem eu sou. Katniss, a garota em chamas. Talvez isso me dê algo para segurar nos próximos dias.
Eu coloco uma camisola grossa de lã e subo na cama. Preciso de cinco segundos para notar que eu nunca iria dormir. E eu precisava dormir desesperadamente, porque na arena todo o momento em que eu cedesse à fadiga seria um convite à morte.
Isso não é bom. Uma hora, duas, três passam, e minhas pálpebras se recusam a ficarem pesadas.
Não posso parar de tentar imaginar exatamente em que terreno estarei amanhã. Deserto? Pântano? Uma frígida devastação? Acima de tudo eu espero por árvores, que podem me fornecer alguns meios de camuflagem, comida e abrigo. Frequentemente há arvores, porque paisagens áridas são maçantes e os Jogos se resolvem muito rápido sem elas. Mas como será o clima? Que armadilhas os Gamemakers esconderam para animar os momentos mais lentos? E ainda há meus tributos companheiros...
Quanto mais ansiosa estou para dormir, mais o sono me evita. Finalmente, eu estou inquieta demais mesmo para ficar na cama. Eu ando pelo quarto, o coração batendo muito rápido, respiração muito curta. Meu quarto parece uma cela de uma prisão. Se eu não conseguir ar logo, vou começar a atirar coisas novamente.
Corro no corredor em direção à porta do telhado. Não está trancada, mas entreaberta. Talvez alguém tenha esquecido de fechá-la, mas isso não importa. O campo de força ao redor do telhado previne qualquer forma desesperada de escapar. E eu não estou procurando escapar, apenas encher meus pulmões de ar. Quero ver o céu e a lua na última noite em que ninguém estará me caçando.
O telhado não é iluminado à noite, mas logo que meu pé descalço toca a superfície de azulejo, vejo sua silhueta, negra contra as luzes que iluminam interminavelmente a Capital.
Há muita comoção acontecendo nas ruas, música, canto e buzinas, nada que eu podia escutar através do grosso vidro dos painéis da janela no meu quarto. Eu podia escapulir agora, sem ele me notar; ele não me ouviria acima do ruído. Mas o ar da noite está tão doce que não posso suportar retornar àquela gaiola abafada do meu quarto. E que diferença isso faz? Se nós falarmos ou não?
Meus pés movem-se silenciosamente sobre os azulejos. Estou apenas a um metro dele quando digo:
— Você deveria dormir um pouco.
Ele se sobressalta, mas não se vira. Posso vê-lo balançando suavemente a cabeça.
— Não queria perder a festa. É por nós, depois de tudo.
Vou ao seu lado e me inclino contra a beira da grade. As ruas largas estão cheias de pessoas dançando. Olho de soslaio para ver suas pequenas figuras em mais detalhes.
— Eles estão em fantasias?
— Quem poderia dizer?  Peeta responde. — Como todas essas roupas malucas que eles usam aqui. Não pôde dormir, também?
— Não pude desligar a minha mente.
— Pensando na sua família?  ele pergunta.
— Não  admito um pouco culpada. — Tudo o que eu posso fazer é pensar sobre amanhã. O que é sem sentido, é claro.
Na luz que vem de baixo, posso ver sua face agora, a estranha forma que se apoia sobre as mãos enfaixadas.
— Eu realmente sinto muito quanto a suas mãos.
— Isso não importa, Katniss. Eu nunca fui um candidato nesses jogos, de qualquer forma.
— Essa não é maneira de pensar  digo.
— Por que não? É verdade. Minha melhor esperança é não dar vexame e...  Ele hesita.
— E o quê?  digo.
— Eu não sei como dizer exatamente. Apenas... eu quero morrer como eu mesmo. Isso faz algum sentido?  ele pergunta.
Eu balanço minha cabeça. Como ele poderia morrer como alguém além de si mesmo?
— Eu não quero que eles me mudem. Tornem-me algum tipo de monstro que eu não sou.
Mordo meu lábio me sentindo inferior. Enquanto eu estive ruminando sobre a disponibilidade de árvores, Peeta estava se esforçando em como manter sua identidade. Sua própria pureza.
— Você quer dizer que não matará ninguém?  pergunto.
— Não, quando a hora chegar, tenho certeza que matarei como todos. Eu não posso cair sem lutar. Só continuo desejando que eu pudesse pensar num modo de... mostrar a Capital que eles não são donos de mim. Que eu sou mais que uma peça em seus Jogos.
— Mas você não é. Nenhum de nós é. É como os Jogos funcionam.
— Ok, mas dentro desse quadro, ainda há você, ainda há eu  ele insiste. — Você não vê?
— Um pouco. Apenas... sem ofensa, mas quem se importa, Peeta?  digo.
— Eu me importo. Quero dizer, a que mais eu sou autorizado a me importar a esse ponto?  ele pergunta irritado.
Ele prende aqueles olhos azuis nos meus agora, exigindo uma resposta.
Dou um passo para trás.
— Importe-se com o que Haymitch disse. Sobre ficar vivo.
Peeta sorri para mim, triste e desdenhoso.
— Ok. Obrigado pelo toque, querida.
É como um tapa na minha cara. Ele usando o acento arrogante de Haymitch.
— Olhe, se você quer passar as últimas horas da sua vida planejando alguma morte nobre na arena, é escolha sua. Eu quero passar as minhas no Distrito Doze.
— Não me surpreenderia se você conseguisse  diz Peeta. — Dê a minha mãe o meu melhor quando você voltar, ok?
— Conte com isso  digo.
Então me viro e deixo o telhado. Passo o resto da noite entrando e saindo de um cochilo, imaginando as observações cortantes que farei a Peeta de manhã.
Peeta Mellark. Nós veremos o quão alto e poderoso ele é quando enfrentar a vida e a morte. Ele provavelmente se transformará naqueles tributos bestas enfurecidos, o tipo que tenta comer o coração de alguém depois de matá-lo.
Houve um cara assim há alguns anos do Distrito 6 chamado Titus. Ele ficou completamente selvagem e os Gamemakers tiveram que paralisá-lo com armas elétricas para juntar os corpos dos jogadores que ele tinha matado antes que ele os comesse. Não há regras na arena, mas canibalismo não fica bem com a audiência da Capital, então eles tentaram acabar com isso. Havia alguma especulação de que a avalanche que finalmente levou Titus para fora foi projetada especificamente para assegurar o vencedor não era um lunático.
Não vejo Peeta de manhã. Cinna aparece antes do amanhecer, me dá uma simples troca para vestir e me guia para o telhado. Minha roupa final e preparações estarão sozinhos nas catacumbas sob a própria arena.
Um aerobarco aparece do nada no ar, justo como aquele na floresta no dia em que eu vi a garota Avox de cabelos vermelhos capturada, e uma escada caindo. Eu posiciono minhas mãos e piso nos degraus mais baixos e instantaneamente é como se eu tivesse congelada. Algum tipo de corrente me junta à escada enquanto estou deslizando segura para dentro.
Espero a escada para me libertar então, mas ainda estou presa quando uma mulher num casaco branco se aproxima de mim carregando uma seringa.
— Esse é apenas seu localizador, Katniss. Quando mais parada você estiver, mais eficiente eu posso colocá-lo  ela diz.
Parada? Eu estou como uma estátua. Mas isso não me previne da sensação do golpe afiado de dor enquanto a agulha insere o dispositivo metálico de localização profundamente sob a pele no lado interno do meu antebraço. Agora os Gamemakers sempre serão capazes de traçar meu lugar na arena. Eles não iriam querer perder um tributo.
Tão logo o localizador está no lugar, a escada me liberta. A mulher desaparece e Cinna é trazido do telhado. Um garoto Avox vem e nos direciona ao quarto onde será o café da manhã. Apesar da tensão no meu estômago, eu como o máximo que posso, embora nenhuma das comidas deliciosas faça alguma impressão em mim. Estou tão nervosa que poderia estar comendo poeira de carvão. A única coisa que me distrai de tudo é a visão das janelas enquanto nós navegamos pela cidade e então para a imensidão além dela. Isso é o que os pássaros veem. Apenas eles são livres e salvos. O oposto de mim.
A corrida continua por meia-hora antes de janela ficar escura, sugerindo que nós estamos nos aproximando da arena.
O aerobarco aterrissa e Cinna e eu voltamos para a escada, só que dessa vez ela segue para baixo dentro de um tubo subterrâneo, dentro das catacumbas que ficam sob a arena. Nós seguimos instruções para o meu destino, uma sala para minha preparação. No Capital, eles a chamam de Sala de Abertura. Nos distritos, é referida como Curral. O lugar para onde os animais vão antes do abate.
Tudo é novo em folha, serei o primeiro e único tributo a usar essa Sala de Abertura. As arenas são sítios históricos, preservados depois dos Jogos. Destinos populares para os moradores da Capital visitarem, nas férias. Ir por um mês, re-assistir os Jogos, passear pelas catacumbas, visitar os lugares onde as mortes ocorreram. Você pode mesmo tomar parte no restabelecimento. Dizem que a comida é excelente.
Eu luto para manter meu café da manhã no estômago enquanto tomo banho e limpo os meus dentes. Cinna faz em meu cabelo a simples trança que é minha marca registrada. Então as roupas chegam, a mesma para cada tributo.
Cinna não tinha falado nada sobre meus trajes, nem sequer sabe o que estará no pacote, mas ele me ajuda a vestir minha roupa de baixo, calça marrom-amarelada simples, blusa verde-clara, cinto marrom vigoroso e um fino casaco de capuz preto que cai nas minhas coxas.
— O material dessa jaqueta é desenhado para refletir o calor do corpo. Espere algumas noites frias  ele diz.
As botas, usadas sobre meias muito justas, são melhores do que eu podia ter esperado. Couro macio diferente do de casa. Essas aqui têm uma sola de borracha estreita e flexível. Bons para corrida.
Penso que terminei quando Cinna puxa o broche de mockingjay de ouro do seu bolso. Tinha me esquecido completamente dele.
— Onde você conseguiu isso?  pergunto.
— Na roupa verde que você usou no trem  diz.
Lembro agora de tirar do vestido da minha mãe, prendendo-o na camisa.
— É sua lembrança do distrito, certo?
Aceno e ele o prega na minha camisa.
— Ele quase abriu o conselho de revisão. Alguns pensaram que o pino podia ser usado como uma arma, o que lhe dá uma vantagem injusta. Mas, finalmente, deixaram-no diz Cinna. — Eles eliminaram o anel daquela garota do Distrito Um, entretanto. Se você torcer a joia, um prego pula para fora. Envenenado. Ela disse que não tinha conhecimento do anel transformado e não tinham como provar que ela soubesse. Mas ela perdeu sua lembrança. Aqui, você está pronta. Dê um giro. Tenha certeza que tudo está confortável.
Eu ando, corro em um círculo, balanço meus braços.
— Sim, está ótimo. Perfeito.
— Então não há nada a fazer a não ser esperar pela chamada. A não ser que você ache que possa comer mais?
Eu recuso a comida, mas aceito um copo de água que tomo aos golinhos enquanto esperamos no sofá. Eu não quero roer minhas unhas ou morder meus lábios, então me encontro mordendo a parte de dentro da minha bochecha. Ela ainda não está totalmente curada de alguns dias atrás. Logo o gosto de sangue enche a minha boca.
Nervosismo ecoa em terror enquanto eu antecipo o que está por vir. Eu podia estar morta, morta sem rodeios, em uma hora. Menos até. Meus dedos obsessivamente rastreiam a protuberância um pouco dura no meu antebraço, onde a mulher tinha injetado o dispositivo de rastreamento. Eu pressiono, embora doa, pressiono tão forte que um pequeno inchaço começa a se formar.
— Você quer conversar, Katniss?  Cinna pergunta.
Balanço a minha cabeça, mas depois de um momento estendo minha mão a ele. Cinna segura com as duas mãos. E é assim como nós sentamos até uma agradável voz feminina anunciar que é a hora da abertura.
Ainda apertando uma das mãos de Cinna, eu ando mais e fico em cima de uma placa circular de metal.
— Lembre-se do que Haymitch falou. Corra, encontre água. O resto virá depois.
Eu aceno.
— E lembre-se disso. Eu não estou autorizado a apostar, mas se eu pudesse, meu dinheiro estaria em você.
— Verdade?  sussurro.
— Verdade  diz Cinna. Ele se inclina e me beija na testa. — Boa sorte, garota em chamas.
E então um cilindro de vidro está descendo ao meu redor, quebrando nosso aperto de mão, cortando-o de mim. Ele coloca seus dedos sob seu queixo. Cabeça erguida.
Eu levanto meu queixo e fico tão reta quanto posso. O cilindro começa a levantar. Por talvez quinze segundos, eu estou na escuridão, e então eu posso sentir a placa metálica me empurrando para fora do cilindro, para o ar aberto. Por um momento, meus olhos estão ofuscados pela brilhante luz do sol e eu estou consciente apenas do vento forte com o cheiro esperançoso de pinheiros.
Então escuto o lendário locutor, Claudius Templesmith, enquanto sua voz ruge ao meu redor.
— Damas e cavalheiros, deixem o septuagésimo quarto Jogos Vorazes começarem!
Sessenta segundos. É esse o tempo que devemos permanecer nos nossos círculos de metal antes do som de um gongo nos liberar. Pise para fora antes de dar um minuto, e minas terrestres arrancarão suas pernas  Sessenta segundos para absorver o círculo de tributos, todos equidistantes da Cornucópia, uma gigante trombeta de corno dourada na forma de um cone com uma ponta curva, a boca com pelo menos seis metros de diâmetro e dez centímetros de altura, derramando as coisas que nos darão vida aqui na arena. Comida, recipientes de água, armas, remédios, vestimentas, iniciadores de fogo.
Espalhados pelo campo estão outros suprimentos, seu valor diminuindo quanto mais distante estejam da Cornucópia. Por exemplo, a apenas três passos dos meus pés está um plástico de noventa centímetros quadrados. Certamente seria de alguma utilidade em um aguaceiro. Mas ali na boca, eu consigo ver uma barraca de acampar que protegeria de quase qualquer tipo de tempo. Se eu tivesse coragem de ir brigar por ela contra os outros vinte e três tributos. O que eu fui instruída a não fazer.
Nós estamos em um pedaço aberto de chão terreno. Uma planície de terra de chão. Atrás dos tributos na minha frente, eu não consigo ver nada, indicando ou uma ladeira excessiva ou até mesmo um precipício. À minha direita tem um lago. À minha esquerda e às minhas costas, um mastro de floresta de pinheiro. É ali que Haymitch iria querer que eu fosse. Imediatamente.
Ouço as instruções dele na minha cabeça. “Só para deixar claro, ponha o máximo de distância possível entre vocês e os outros, e encontrem uma fonte de água.”
Mas é tentador, tão tentador, quando eu vejo os prêmios esperando lá perante mim. E eu sei que se eu não pegá-los, alguma outra pessoa pegará. Que os Carreiristas que sobrevivem ao banho de sangue dividirão a maioria dessa pilhagem vital.
Algo captura a minha atenção. Lá, descansando em um amontoado de cobertores, está um estojo prateado de flechas e um arco, já montado, só esperando ser pego. Esse é meu, eu penso. É para mim.
Eu sou rápida. Consigo correr a toda velocidade mais rápido do que qualquer uma das garotas na nossa escola, apesar de algumas conseguirem me vencer em corridas de distância. Mas esse comprimento de trinta e seis metros, é para isso que fui feita. Eu sei que posso pegá-los, sei que consigo alcançá-los primeiro, mas então a pergunta é: quão rápido eu consigo sair dali? Depois que eu tiver afastado os pacotes e pegado as armas, outros terão chegado à Cornucópia, e um ou dois eu talvez seja capaz de alvejar, mais digamos que há uma dúzia, a queima-roupa, eles poderiam me abater com as lanças e clavas. Ou seus próprios punhos poderosos.
Ainda assim, eu não serei o único alvo. Aposto que muitos dos outros tributos rejeitariam uma garota menor, mesmo uma que tirou onze em seu treinamento, para abater seus adversários mais ferozes.
Haymitch nunca me viu correr. Talvez se ele tivesse visto, teria me dito para ir adiante. Pegar a arma. Já que é essa a arma que pode ser a minha salvação. E eu só vejo um arco na pilha inteira. Eu sei que o minuto deve estar quase acabando e terei que decidir qual a minha estratégia será e eu me encontro posicionando meu pé para correr, não para longe, para a proteção da floresta circundante, mas na direção da pilha, na direção do arco. Quando de repente eu noto Peeta, ele está a cerca de cinco tributos à minha direita, uma distância bem boa, ainda assim, consigo afirmar que ele está olhando para mim e acho que ele pode estar balançando sua cabeça. Mas o sol está nos meus olhos, e enquanto eu estou quebrando minha cabeça sobre isso, o gongo soa.
E eu perdi! Perdi minha chance! Porque esses poucos segundos extras que perdi por não estar pronta são o bastante para mudar de ideia sobre ir. Meus pés se arrastaram por um momento, confusos com a direção que o meu cérebro queria tomar e então eu me arremessei para frente, peguei a placa de plástico e um pão de forma. As escolhas são tão pequenas e eu estou tão brava com Peeta por me distrair que eu corri a toda velocidade por dezoito metros para pegar uma mochila laranja brilhante que poderia carregar qualquer coisa, porque não consigo suportar partir com literalmente nada.
Um garoto, eu acho que do Distrito 9, pega a mochila ao mesmo tempo que eu e por um breve instante nós lutamos por ela, e então ele tosse, respingando sangue no meu rosto. Eu recuo, enojada pelo respingo quente e grudento. Então o garoto desliza para o chão. É quando eu vejo a faca nas suas costas. Outros tributos já alcançaram a Cornucópia e estão se espalhando para atacar.
Sim, a garota do Distrito 2, há nove metros, correndo na minha direção, uma mão apertando meia dúzia de facas. Eu a vi jogá-las no treinamento. Ela nunca erra. E eu sou seu próximo alvo.
Todo o medo geral que eu estive sentindo se condensa em um medo imediato dessa garota, dessa predadora que pode me matar em segundos. Adrenalina é atirada através de mim e eu atiro a mochila por sobre um ombro e corro a toda velocidade para a floresta. Eu consigo ouvir a lâmina assobiando na minha direção e eu levanto a mochila reflexivamente para proteger a minha cabeça. A lâmina se aloja na mochila. Com ambas as alças nos meus ombros agora, corro para as árvores. De algum modo eu sei que a garota não me perseguirá. Que ela será atraída de volta para a Cornucópia antes que todas as coisas boas acabem. Um sorriso irônico cruza o meu rosto. Obrigada pela faca, penso.
Na beira da floresta eu me viro por um instante para analisar o campo. Cerca de mais ou menos uma dúzia de tributos estão depenando a Cornucópia. Vários já estão caídos mortos no chão. Aqueles que fugiram estão desaparecendo nas árvores ou no vazio oposto a mim.
Eu continuo correndo até que a floresta tenha me escondido dos outros tributos, então diminuo para uma corrida leve uniforme que acho que consigo manter por algum tempo. Pelas próximas horas, alterno entre correr de leve e andar, colocando o máximo de distância quanto consigo entre eu e meus competidores.
Eu perdi meu pão durante a luta com o garoto do Distrito 9, mas consegui enfiar o plástico na minha manga então enquanto eu ando eu dobro-o organizadamente e enfio-o em um bolso. Eu também solto a faca – é fina com uma lâmina longa e afiada, serrada próxima ao cabo, o que será útil para serrar coisas – e deslizo-a no meu cinto. Não ouso parar para examinar o conteúdo da mochila ainda. Eu simplesmente continuo, pausando apenas para checar perseguidores.
Eu posso continuar por um longo tempo. Sei disso pelos dias na floresta. Mas eu precisarei de água. Essa foi a segunda instrução do Haymitch, e já que eu meio que estraguei a primeira, fico de olho por qualquer sinal dela. Sem sorte.
A floresta começa a desenvolver-se, e os pinheiros estão mesclados com uma variedade de árvores, algumas eu reconheço, algumas são completamente estrangeiras para mim. Uma hora, eu ouço um barulho e puxo minha faca, pensando que talvez eu tenha que me defender, mas só assustei um coelho.
— Bom te ver  sussurro.
Se há um coelho, pode haver centenas simplesmente esperando para serem capturados.
O chão se inclina. Eu não gosto disso particularmente. Vales me fazem sentir aprisionada. Eu quero ficar no alto, como nas colinas ao redor do Distrito 12, onde consigo ver meus inimigos se aproximando. Mas eu não tenho escolha a não ser continuar indo.
Estranho, mas não me sinto muito mal. Os dias me empanturrando se provaram válidos. Eu tenho capacidade de resistência mesmo tendo dormido pouco. Estar na floresta é rejuvenescedor. Estou feliz pela solidão, apesar de ser uma ilusão, porque eu provavelmente estou na tela agora. Não constantemente, mas em intervalos. Há tantas mortes para se mostrar no primeiro dia que um tributo viajando pela floresta não é muito que se ver. Mas eles mostrarão o bastante de mim para informar às pessoas que eu estou viva, intacta e me movendo.
Um dos dias mais pesados de aposta é a abertura, quando as casualidades iniciais aparecem. Mas isso não se compara ao que acontece quando o campo se espreme em um punhado de jogadores.
É final da tarde quando começo a escutar os canhões. Cada tiro representa um tributo morto. A luta deve ter finalmente acabado na Cornucópia. Eles nunca coletam os corpos do banho de sangue até que os assassinos tenham se dispersado.
No dia da abertura, eles nem ao menos disparam os canhões até a luta inicial acabar, porque é difícil demais ter uma noção das fatalidades. Eu me permito pausar, ofegando, enquanto conto os tiros. Um... dois… três… continuamente até que se chegue a onze. Onze mortos no total. Treze restantes para jogar.
Minhas unhas arranham o sangue seco do garoto do Distrito 9 que tossiu no meu rosto. Ele se foi, certamente. Eu me pergunto sobre Peeta. Ele durou o dia? Eu saberei em algumas horas. Quando eles projetarem as imagens dos mortos no céu para o resto de nós vermos.
Repentinamente, eu sou sobrecarregada pelo pensamento que Peeta possa já estar perdido, drenado de sangue, coletado, e em processo de ser transportado de volta para a Capital para ser limpo, vestido novamente e mandado em uma caixa de madeira simples de volta para o Distrito 12. Não mais aqui. Se dirigindo para casa.
Tentei arduamente me lembrar se eu o tinha visto uma vez que a ação começara. Mas a última imagem que consigo invocar é o Peeta balançando sua cabeça enquanto o gongo soa.
Talvez seja melhor se ele já tiver partido. Ele não tinha confiança alguma de que poderia vencer. E não acabarei com a tarefa desagradável de matá-lo. Talvez seja melhor se ele tiver saído dessa de vez.
Eu desmorono próxima a minha mochila, exausta. Preciso vasculhar o que tem nela de qualquer jeito antes que a noite caia. Ver o que eu tenho para trabalhar. Enquanto desengancho as alças, consigo sentir que tem uma estrutura forte, apesar de ser de uma cor infeliz. Esse laranja praticamente brilhará no escuro. Eu faço uma nota mental para camuflá-la cedo amanhã.
Eu abro rapidamente o zíper. O que eu mais quero, bem nesse momento, é água. A diretriz do Haymitch para achar água imediatamente não era arbitrária. Eu não durarei muito sem ela. Por alguns dias, serei capaz de funcionar com os sintomas desagradáveis da desidratação, mas após isso eu deteriorarei para um desamparo e estarei morta em uma semana, no máximo.
Cuidadosamente coloco a vista os suprimentos. Um fino saco de dormir preto que reflete o calor corporal. Um pacote de bolachas. Um pacote de tiras de carne seca. Uma garrafa de iodo. Uma caixa de fósforos de madeira. Um rolo pequeno de arame. Um par de óculos de sol. E uma garrafa de plástico de dois litros com uma tampa para levar água que está totalmente seca.
Nada de água. Seria tão difícil assim para eles encherem a garrafa? Eu me torno consciente da secura na minha garganta e boca, das rachaduras nos meus lábios. Eu estivera me movendo o dia todo. Estava quente e eu tinha suado muito. Eu faço isso em casa, mas sempre houve riachos para se beber, ou neve para derreter se chegasse a esse ponto.
Enquanto eu tornava a encher minha mochila, tive um péssimo pensamento. O lago. Aquele que eu vi enquanto estava esperando pelo gongo soar. E se aquela fosse a única fonte de água na arena? Desse jeito eles garantiriam nos atrair para uma briga. O lago é uma jornada de dia todo de onde eu me sento agora, uma jornada muito mais árdua com nada para beber. E então, mesmo que o alcance, com certeza deverá estar pesadamente segura por alguns dos Carreiristas. Eu estou prestes a entrar em pânico quando me lembro do coelho que assustei hoje mais cedo. Ele tem que beber, também. Eu só tenho que achar onde.
O crepúsculo está chegando e eu estou facilmente cansada. As árvores são finas demais para oferecer muito esconderijo. A camada de folhas de pinheiro que abafa os meus passos tanto dificulta localizar animais quando eu preciso das trilhas deles para achar água. E ainda estou me dirigindo colina abaixo, cada vez mais profundamente para um vale que parece interminável.
Estou com fome, também, mas ainda não ouso assaltar meu estoque precioso de bolachas e carne. Ao invés, uso a minha faca e vou trabalhar em um pinheiro, cortando a casca de árvore e raspando um grande punhado de cortiça macia. Eu lentamente mastigo o negócio enquanto ando. Após uma semana da comida mais chique do mundo, é um pouco difícil engolir. Mas eu já comi muitos pinheiros na minha vida. Eu me ajustarei rapidamente.
Mais uma hora e fica claro que eu tenho que achar um lugar para acampar. Criaturas da noite estão saindo. Eu consigo ouvir o pio de uma coruja ou o uivo ocasional, minha primeira pista de que estarei competindo com predadores pelos coelhos. Se serei vista como uma fonte de alimento, é cedo demais para afirmar. Pode haver qualquer quantidade de animais me perseguindo nesse momento.
Mas nesse instante, eu decido tornar meus companheiros tributos uma prioridade. Tenho certeza de que muitos continuarão caçando pela noite. Aqueles que venceram na Cornucópia terão comida, uma abundância da água do lago, tochas ou lanternas, e armas que estão se coçando para usar. Eu só posso esperar que eu tenha viajado longe e rápido o bastante para estar fora de alcance.
Antes de me assentar, pego meu arame e armo duas armadilhas de movimento nos galhos cortados. Eu sei que é arriscado armar emboscadas, mas a comida acabará logo aqui. E eu não posso fazer armadilhas quando estiver fugindo. Ainda assim, ando mais cinco minutos antes de acampar.
Eu escolho a minha árvore cuidadosamente. Um salgueiro, não terrivelmente alto, mas alojado em um grupo de outros salgueiros, oferecendo esconderijo nesses galhos longos e fluidos. Eu subo, ficando com os galhos mais fortes perto do tronco, e acho uma forquilha vigorosa como minha cama. Leva algum tempo, mas eu arranjo o saco de dormir de uma maneira relativamente confortável. Coloco minha mochila no fundo do saco, então me deslizo para dentro.
Como precaução, eu removo meu cinto, enrolo-o todo ao redor do galho e do meu saco de dormir, e o recoloco na minha cintura. Agora se eu rolar no meu sono, não irei cair no chão. Eu sou pequena o bastante para enfiar o topo do saco por sobre a minha cabeça, mas coloco meu capuz também.
À medida em que a noite cai, o ar esfria rapidamente. Apesar do risco que eu corri em pegar a mochila, sei agora que foi a escolha certa. Esse saco de dormir, irradiando e preservando o meu calor corporal, será inestimável. Tenho certeza de que há diversos tributos cuja maior preocupação agora é como se manter quente, enquanto eu na verdade serei capaz de ter algumas horas de sono. Se eu apenas não estivesse com tanta sede...
A noite acaba de chegar quando eu ouço o hino que precede o recapitulamento das mortes. Através dos galhos, consigo ver o brasão da Capital, que parece estar flutuando no céu. Eu na verdade estou vendo outra tela, uma enorme que é transportada por um de seus aerobarcos ausentes. O hino dissipa-se e o céu fica escuro por um momento.
Em casa, estaríamos assistindo a cobertura total de cada uma das mortes, mas isso dá uma vantagem injusta para os tributos vivos. Por exemplo, se eu coloco minhas mãos num arco e acerto alguém, meu segredo seria revelado a todos. Não, aqui na arena, tudo que vemos são as mesmas fotografias que mostraram quando televisionaram nossas notas do treinamento. Fotos de rosto simples.
Mas agora, invés de notas, eles postam apenas números de distritos. Eu tomo um longo fôlego à medida que os rostos dos onze tributos mortos começam e marca-os um por um nos meus dedos.
A primeira a aparecer é a garota do Distrito 3. Isso quer dizer que todos os Carreiristas do 1 e do 2 sobreviveram. Nenhuma surpresa aqui. Então o garoto do 4. Eu não esperava essa, geralmente todos os Carreiristas sobrevivem ao primeiro dia. O garoto do Distrito 5... eu acho que a garota de rosto de raposa – Foxface - o matou. Ambos os tributos do 6 e do 7. O garoto do 8. Ambos do 9. Sim, ali está o garoto por quem eu briguei pela mochila. Eu conto nos meus dedos, só mais um tributo morto faltando. É o Peeta? Não, lá está a garota do Distrito 10. É isso. O brasão da Capital está de volta com um floreio musical final. Então a escuridão e os sons da floresta retornam.
Estou aliviada por Peeta estar vivo. Eu digo a mim mesma novamente que se eu for morta, a vitória dele beneficiará mais a minha mãe e a Prim. É isso o que eu digo a mim mesma para explicar as emoções conflitantes que surgem quando eu penso em Peeta.
A gratidão por ele ter me dado uma vantagem ao confessar seu amor por mim na entrevista. A raiva por sua superioridade no telhado. O temor que possamos ficar cara a cara a qualquer momento nessa arena.
Onze mortos, mas nenhum do Distrito 12. Eu tento perceber quem sobrou. Cinco Carreiristas. A Foxface. Thresh e Rue. Rue... então ela sobreviveu ao primeiro dia afinal. Eu não posso evitar me sentir feliz. Isso dá dez de nós. Os outros três eu descobrirei amanhã. Agora que está escuro, e que eu viajei muito, e eu estou aconchegada altamente nessa árvore, agora eu devo tentar descansar.
Eu não durmo realmente há dois dias, e então houve o longo dia de jornada até a arena. Lentamente, eu permito que meus músculos relaxem. Que meus olhos fechem. A última coisa que eu penso é que é sorte eu não roncar...
Snap! O som de um galho quebrando me acorda. Por quanto tempo eu dormi? Quatro horas? Cinco? A ponta do meu nariz está congelada.
Snap! Snap! O que está havendo? Esse não é o som de um galho sob o pé de alguém, mas a explosão aguda de alguém vindo de uma árvore.
Snap! Snap! Eu julgo ser há centenas de metros a minha direita. Lentamente, silenciosamente, eu me viro naquela direção. Por alguns minutos, não há nada além de escuridão e um pouco de arrastamento de pés. Então eu vejo uma faísca e um fogo pequeno começa a florescer. Um par de mãos se aquece nas chamas, mas eu não consigo distinguir mais que isso.
Tenho que morder o meu lábio para não gritar cada nome imundo que conheço para o iniciador do fogo. O que está pensando? Um fogo logo ao anoitecer teria sido uma coisa. Aqueles que batalharam na Cornucópia, com sua força superior e excedente de fornecimentos, não seria possível para eles estarem perto o bastante para avistar chamas então. Mas agora, quando eles provavelmente estiveram passando um pente fino na floresta por horas procurando as vítimas. Tanto faz se você também estivesse acenando uma bandeira e gritando, “Venha e me pegue!”
E aqui estou eu, a uma distância curta do maior idiota dos Jogos. Presa em uma árvore. Não ousando fugir, já que minha localização em geral acabou de ser anunciada para qualquer assassino que se importa. Quero dizer, eu sei que está frio aí e nem todo mundo tem um saco de dormir. Mas então você cerra seus dentes e aguenta até o amanhecer!
Eu me deito nervosa no meu saco pelas próximas horas, na verdade pensando que se eu conseguir sair dessa árvore, não terei o menor problema em dizimar meu vizinho próximo. Meu instinto tem sido de fugir, não lutar. Mas obviamente essa pessoa é um perigo. Pessoas estúpidas são perigosas. E essa provavelmente não tem muita arma, enquanto eu tenho essa faca excelente.
O céu ainda está escuro, mas eu consigo sentir os primeiros sinais do amanhecer se aproximando. Estou começando a achar que nós – quero dizer, a pessoa cuja morte estou planejando agora e eu –podemos realmente ter passado despercebidos.
Então eu ouço. Diversos pares de pés correndo. O iniciador do fogo deve ter cochilado. Eles estão em cima dela antes que ela possa escapar. Eu sei que é uma garota agora, consigo afirmar pela súplica, pelo grito agonizante que se segue. Então há uma risada e parabenizações de diversas vozes. Alguém grita, “Doze já foram, faltam onze!” o que consegue uma rodada de assovios de apreciação.
Então eles estão lutando em bando. Não estou realmente surpresa. Regularmente, alianças são formadas nos estágios primários dos Jogos. Os fortes se juntam para caçar os fracos, então, quando a tensão começa a se tornar grande demais, começam a se virar uns contra os outros. Eu não tenho que pensar muito em quem formou essa aliança. Serão os Carreiristas restantes dos Distritos 1, 2 e 4. Dois garotos e três garotas. Aqueles que almoçavam juntos.
Por um momento, ouço-os checando os suprimentos da garota. Eu posso afirmar por seus comentários que eles não acharam nada de bom. Eu me pergunto se a vítima é a Rue, mas rapidamente descarto esse pensamento. Ela é brilhante demais para estar preparando uma fogueira como essa.
— É melhor nos afastarmos para que eles possam pegar o corpo antes que ele comece a feder.
Estou quase certa que esse é o garoto bruto do Distrito 2. Há murmúrios de assentimento e então, para meu horror, eu escuto o bando se dirigindo na minha direção.
Eles não sabem que eu estou aqui. Como poderiam? E eu estou bem escondida no grupo de árvores. Pelo menos enquanto o sol permanece abaixado. Então meu saco de dormir preto se transformará de camuflagem em encrenca. Se eles simplesmente continuarem se movendo, passarão por mim e terão ido embora em um minuto.
Mas os Carreiristas param na clareira a cerca de nove metros da minha árvore. Eles têm lanternas, tochas. Eu consigo ver um braço aqui, uma bota ali, através dos intervalos nos galhos. Eu viro pedra, nem mesmo ousando respirar. Eles me avistaram? Não, ainda não. Eu consigo afirmar pelas palavras deles que suas mentes estão em outro lugar.
— Não deveríamos ter ouvido já um canhão?
— Eu diria que sim. Nada para impedir que eles entrem imediatamente.
— A não ser que ela não esteja morta.
— Ela está morta. Eu mesmo a imobilizei.
— Então onde está o canhão?
— Alguém deveria voltar. Se certificar que o trabalho foi feito.
— É, não queremos ter que localizá-la duas vezes.
— Eu disse que ela está morta!
Uma discussão ocorre até que um tributo silencia os outros.
— Estamos perdendo tempo! Eu vou terminar com ela e vamos nos mover.
Eu quase caio da árvore. A voz pertence ao Peeta.
Graças a Deus eu tive a perspicácia de me prender. Eu rolei para o lado do galho e encarei o chão, segura no lugar pelo cinto, por um lado, e meus pés na mochila dentro do meu saco de dormir, apoiados contra o tronco. Deve ter havido algum farfalho quando eu me inclinei de lado, mas os Carreiristas estavam muito concentrados em sua discussão para perceber.
— Vá em frente, então, Lover Boy  diz o garoto do Distrito 2. — Veja por si mesmo.
Eu só tenho um vislumbre de Peeta, iluminado pela tocha, voltando para a garota pelo fogo. Seu rosto está inchado dos machucados, há uma bandagem manchada de sangue em um braço, e pelo som de seu andar, está mancando. Lembro dele balançando sua cabeça, me dizendo para não entrar na briga pelos suprimentos, quando o tempo todo, o tempo todo ele planejava se atirar no centro das coisas. Justo o oposto do que Haymitch tinha dito para ele fazer.
Ok, eu posso engolir isso. Ver todos aqueles suprimentos foi tentador. Mas isso... isso é outra coisa. Essa parceria com a matilha de lobos Carreiristas para caçar o resto de nós. Ninguém do Distrito 12 pensaria em fazer uma coisa dessas! Carreiristas são excessivamente cruéis, arrogantes, melhor alimentados, mas só porque são os cãezinhos da Capital.
De modo universal, há um sólido ódio de todos menos aqueles de seus próprios distritos. Posso imaginar as coisas que eles estão dizendo sobre ele em casa agora. E Peeta teve a ousadia de conversar comigo sobre desonra?
Obviamente, o garoto nobre do telhado estava jogando apenas mais um jogo comigo. Mas esse será seu último. Eu assistirei avidamente o céu de noite por sinais de sua morte, se eu mesma não matá-lo primeiro.
Os Carreiristas estão silenciosos até que ele sai do campo auditivo, então usam vozes baixas.
— Por que nós apenas não o matamos logo agora e acabamos com isso?
— Deixe-o por enquanto. Qual é o dano? E ele é útil com aquela faca.
Ele é? Isso é novidade. Que monte de coisas interessantes eu estou aprendendo sobre meu amigo Peeta hoje.
— Além disso, ele é nossa melhor chance de encontrá-la.
Eu levo um momento para registrar que eles estão se referindo a mim.
— Por quê? Você acha que ela está mesmo naquela coisa romântica e sentimental?
— Ela deve. Parece muito simplória para mim. Toda vez que eu penso nela dando voltas naquele vestido, tenho vontade de vomitar.
— Gostaria de saber como ela conseguiu aquele onze.
— Aposto que o Lover Boy sabe.
O som de Peeta retornando os silencia.
— Ela estava morta? — pergunta o garoto do Distrito 2.
— Não. Mas agora está  diz Peeta. Justo então, o canhão dispara. — Prontos para ir adiante?
O grupo dos Carreiristas começa a correr justo enquanto a alvorada começa irromper, e as músicas dos pássaros preenchem o ar. Eu permaneço na minha posição estranha, os músculos tremendo com o esforço por um longo tempo, então me suspendo de volta ao meu galho.
Eu preciso descer, continuar, mas por um momento eu fico deitada ali, digerindo o que acabei de escutar. Não só Peeta está com os Carreiristas, mas está os ajudando a me encontrar. A garota simplória que tem que ser levada a sério por causa de seu onze. Porque ela pode usar seu arco e flecha. O que Peeta sabe melhor que qualquer um.
Mas ele não disse pra eles ainda. Ele está guardando essa informação porque sabe que é tudo que o mantém com vida? Ele ainda está fingindo me amar para a audiência? O que está se passando pela cabeça dele?
De repente, os pássaros ficam silenciosos. Então um pássaro dá uma chamada de alerta. Uma simples nota. Como aquela que Gale e eu escutamos quando a Avox de cabelos vermelhos foi pega. Alto, acima da fogueira morrendo, um aerobarco se materializa. Um enorme conjunto de dentes de metal cai. Devagar, gentilmente, a tributo morta é levada para dentro do aerobarco. Então ele some. Os pássaros retomam o canto.
— Mexa-se  sussurro para mim mesma.
Esquivo-me do saco de dormir e o coloco na mochila. Respiro fundo. Enquanto estava oculta na escuridão, no saco de dormir e nos ramos de salgueiro, é provável que tenha sido difícil para as câmeras conseguirem um bom close de mim. Sei que eles devem estar me rastreando agora mesmo. No minuto em que eu encosto no chão, tenho garantido meu close-up.
A audiência estará fora de si, sabendo que eu estava na árvore, que eu escutei a conversa dos Carreiristas, que descobri que Peeta estava com eles. Até que eu planeje exatamente como eu vou jogar, é melhor, ao menos, passar por cima das coisas. Não perplexa. Certamente não confusa ou assustada.
Não, eu preciso ver um passo à frente no jogo.
Então enquanto deslizo para fora das folhagens e dentro da luz do amanhecer, paro por um segundo, dando às câmeras tempo para focarem em mim. Então inclino minha cabeça levemente para o lado e dou um sorriso. Vejam! Deixem-nos imaginarem o que isso significa!
Eu estou para abandonar o lugar quando penso nas armadilhas. Talvez seja imprudente checá-las com os outros tão perto. Mas eu tenho. Muitos anos de caçada, acho. E a isca de uma possível comida.
Sou recompensada com um ótimo coelho. Num piscar de olhos, limpei e retirei as tripas do animal, deixando a cabeça, os pés, rabo, pele e vísceras sob uma pilha de folhas. Gostaria de ter fogo – comer coelho cru pode te dar febre, uma lição que aprendi da pior forma – quando penso no tributo morto.
Corro de volta ao seu campo, certa de que o carvão do fogo de sua morte ainda está quente. Eu corto o coelho, ponho num galho em forma de espeto e coloco-o sobre as brasas.
Estou satisfeita com as câmeras agora. Quero que os patrocinadores vejam que eu posso caçar, que sou uma boa aposta porque não cairei em armadilhas tão facilmente quanto os outros irão pela fome. Enquanto o coelho assa, eu moo parte dos ramos carbonizados e passo-o sobre minha mochila laranja. O tom a escurece, mas sinto que uma camada de lama iria ajudar definitivamente. É claro, para ter lama, precisaria de água...
Puxo meus utensílios, seguro minha saliva, chuto alguma sujeira sobre as brasas e tomo a direção oposta da que os Carreiristas foram. Como metade do coelho enquanto ando, então embrulho as sobras em um plástico para mais tarde. A carne para o rugido no meu estômago, mas faz pouco para sossegar minha sede. Água é minha maior prioridade agora.
Enquanto marcho, tenho certeza que ainda estou prendendo as telas na Capital, então tenho o cuidado de continuar a esconder minhas emoções. Mas que diversão Claudius Templesmith deve estar tendo com seus comentaristas convidados, dissecando o comportamento de Peeta, minha reação.
O que fazer de tudo? Peeta tem revelado suas verdadeiras cores? O que isso afeta nas chances de aposta? Nós perderemos patrocínios? Nós ao menos temos patrocínio? Sim, tenho certeza que temos, ou pelo menos tínhamos.
Certamente Peeta acabou nossa dinâmica de namorados celebridades. Ou não? Talvez, uma vez que ele não fale muito sobre mim, nós ainda possamos conseguir algo disso. Talvez as pessoas pensem que é algo que nós planejamos juntos se eu parecer que estou divertida agora.
O sol se eleva no céu e mesmo através da cobertura parece excessivamente iluminado. Cubro os meus lábios com a gordura do coelho e tento não arquejar, mas é inútil. Só se passou apenas um dia e eu estou desidratando rápido. Tento pensar em tudo que sei sobre achar água. Corro morro abaixo, então, de fato, continuar a descer nesse vale não é uma má ideia. Se eu pudesse apenas localizar uma trilha ou um ponto particularmente verde na vegetação, podia me ajudar bastante, mas nada parece mudar. Há apenas um leve declive gradual, os pássaros, a mesmice nas árvores.
Enquanto o dia passa, sei que estou com problemas. O pouco que eu pude urinar era castanho escuro, minha cabeça está doendo e há uma mancha seca na minha língua que se recusa a umedecer. O sol machuca meus olhos, então pego meus óculos escuros, mas quando os coloco, eles fazem algo suspeito com a minha visão, então apenas os coloco de volta na minha mochila.
É fim de tarde quando acho que encontrei ajuda. Identifico um grupo de arbustos de amoras e me apresso em tirar as frutas, sugando o doce suco de suas peles. Mas justo quando estou segurando-os perto dos meus lábios, realmente olho para eles.
O que eu pensei que fosse tinha o formato levemente diferente, e quando abro um, o interior é vermelho vivo. Eu não reconheço essas bagas, talvez elas fossem comestíveis, mas eu estou achando que essa é uma vil armadilha da parte dos Gamemakers. Até o instrutor de plantas no Centro de Treinamento nos disse para fugir de bagas a menos que você esteja 100 por cento certa de que elas não sejam tóxicas. Algo que eu já sabia, mas estou com tanta sede que preciso de tempo para ter a força de jogá-las fora.
A fadiga está começando a me envolver, mas não o cansaço usual que segue uma longa caminhada. Tenho que parar e descansar frequentemente, embora eu saiba que a única cura para o que me aflige requer procura contínua.
Experimento uma nova tática – subir nas árvores tão alto que ouso no meu instável estado para procurar algum sinal de água. Mas tão longe quanto eu consigo ver em qualquer direção, há o mesmo implacável trecho de floresta.
Determinada a continuar até o cair da noite, caminho até estar tropeçando sobre meus pés.
Exausta, eu me lanço em cima de uma árvore e me prendo lá. Não tenho apetite, mas chupo os ossos do coelho para dar a minha boca algo para fazer. A noite cai, o hino toca e no alto do céu vejo a figura de agora, que aparentemente era do Distrito 8. A qual o Peeta voltou para acabar.
Meu medo do grupo de Carreiristas é mínimo comparado à minha sede ardente. Além disso, eles estão seguindo para longe de mim e por enquanto eles também terão de descansar. Com a escassez de água, eles podem ter que retornar para o lago para encher as garrafas.
Talvez, esse seja o único curso para mim também.
A manhã traz agonia. Minha cabeça palpita a cada batida do coração. Movimentos simples mandam punhaladas de dor através das minhas juntas. Eu caio mais do que pulo da árvore. Toma alguns minutos para eu juntar meus utensílios. Em algum lugar dentro de mim, sei que isso é errado. Eu deveria estar agindo mais cuidadosamente, movendo-me com mais urgência. Mas minha mente parece enevoada e formar um plano é difícil. Inclino-me para trás contra o tronco da árvore, um dedo delicadamente alisando a superfície de lixa da minha língua, enquanto avalio minhas opções. Como eu consigo água?
Retornar ao lago. Nada bom. Eu nunca faria isso.
Esperar por chuva. Não há nem uma nuvem no céu.
Continuar procurando. Sim, essa é minha única chance. Mas então, outro pensamento me bate, e a explosão de raiva que se segue traz meu senso de volta.
Haymitch! Ele podia me mandar água! Aperte um botão e a envie para mim em um paraquedas de prata em minutos. Sei que devo ter patrocinadores, no mínimo um ou dois que podem bancar meio litro de água para mim. Sim, é caro, mas essas pessoas, elas são feitas de dinheiro. E eles estarão apostando em mim também. Talvez Haymitch não perceba o quão profunda é minha necessidade.
Digo numa voz tão alta quanto ouso.
— Água.
Espero, esperançosa, por um paraquedas descer do céu. Mas nada está vindo.
Algo está errado. Eu estava enganada sobre ter patrocinadores? Ou o comportamento de Peeta fez com que eles todos recuassem? Não, não acredito. Há alguém aí fora que quer me comprar água, só Haymitch está recusando em deixá-la passar para cá. Como meu mentor, ele tem o controle do fluxo de presentes dos patrocinadores. Sei que ele me odeia. Ele deixou isso bem claro. Mas o bastante para me deixar morrer? Disso? Ele não pode fazer isso, pode? Se um mentor maltrata seus tributos, será responsabilizado pelos telespectadores, pelas pessoas do Distrito 12. Mesmo Haymitch não se arriscaria, arriscaria? Diga o que quiser sobre meus companheiros negociantes do Prego, mas não acho que eles dariam boas-vindas a ele lá se me deixasse morrer dessa forma. E então onde ele iria conseguir a sua bebida?
Então... o quê? Ele está tentando me fazendo sofrer por desafiá-lo? Ele está direcionando todo o patrocínio para Peeta? Ele está tão bêbado até para notar o que está acontecendo nesse momento?
De alguma forma não acredito nisso e não acredito que ele está tentando me matar por negligência, também. Ele tem, na verdade, no seu próprio modo desagradável, genuinamente tentado me preparar para isso. Então, o que está acontecendo?
Enterro meu rosto em minhas mãos. Não há perigo de lágrimas agora, eu não poderia produzir uma nem para salvar a minha vida.
O que Haymitch está fazendo? Apesar da minha raiva, ódio e suspeitas, uma pequena voz atrás da minha cabeça sussurra uma resposta.
Talvez ele esteja te mandando uma mensagem, ela diz. Uma mensagem. Dizendo o quê? Então eu sei. Só há uma boa razão para Haymitch estar segurando a água de mim. Porque ele sabe que eu quase estou encontrando-a.
Eu cerro meus dentes e me coloco de pé. Minha mochila parece ter triplicado o peso. Encontro um galho quebrado que vai servir como uma bengala e começo a caminhada.
O sol está forte, ainda mais abrasador que os primeiros dois dias. Sinto-me como um velho pedaço de couro, secando e chicoteando no calor. Todo passo é um esforço, mas me recuso a parar. Me recuso a sentar. Se eu sentar, há uma boa chance de não ser capaz de me levantar de novo, de que eu nem lembre minha tarefa.
Que presa fácil eu sou! Qualquer tributo, até a pequena Rue, poderia me pegar agora, meramente pulando sobre mim e me matando com minha própria faca e eu teria pouca força para resistir. Mas se alguém está na minha parte da floresta, ignora-me. A verdade é, eu sinto como se estivesse a milhões de quilômetros de outra alma viva.
Não sozinha, porém. Não, eles com certeza têm as câmeras me seguindo agora. Penso nos anos assistindo tributos morrendo de fome, congelando, sangrando ou desidratando até a morte. A menos que haja uma briga muito boa acontecendo em algum lugar, eu estou sendo a atração.
Meus pensamentos voltam a Prim. É provável que ela não esteja me assistindo ao vivo, mas eles mostram as gravações na escola durante o almoço. Por ela, tenho que parecer o menos desesperada possível.
Mas pela tarde, sei que o final está chegando. Minhas pernas estão tremendo e meu coração acelerado. Eu continuo esquecendo exatamente o que estou fazendo. Tropeço repetidamente e consigo recuperar meus pés, mas quando a vara escorrega por debaixo de mim, eu finalmente caio no chão incapaz de me levantar. Deixo meus olhos se fecharem.
Eu me enganei quanto a Haymitch. Ele não tem nenhuma intenção de me ajudar.
Está tudo certo, penso. Não é tão ruim aqui. O ar é menos quente, significando que a noite se aproxima. Há um suave, doce cheiro que me lembra lírios. Meus dedos batem no chão macio, deslizando facilmente sobre ele. Esse é um bom lugar para morrer, penso.
Minhas pontas dos dedos fazem pequenos padrões de giros na terra fria e escorregadia. Eu adoro lama, penso. Quantas vezes eu segui as caças com a ajuda dessa macia e legível superfície. Bom para picadas de abelha, também. Lama. Lama. Lama! Meus olhos se abrem e eu envio meus dedos na terra. É lama! Meu nariz se ergue no ar. E aqueles são lírios! Aguapés!
Eu rastejo agora, sobre a lama, arrastando-me em direção ao cheiro. A cinco metros de onde eu caí, rastejo pela confusão de plantas até a poça. Flutuando na superfície, flores amarelas no florescer, estão meus belos lírios.
É tudo o que posso fazer para não mergulhar o meu rosto na água e engolir tudo o que posso. Mas tenho juízo o bastante para me abster. Com as mãos tremendo, pego minha garrafa térmica e a encho com água. Acrescento o que lembro ser o número certo de gotas de iodo para purificá-la. A meia hora de espera é uma agonia, mas eu consigo. Ao menos, penso que é meia hora, mas é certamente o tempo que posso suportar.
Devagar, calma agora, digo para mim mesma.
Tomo um gole e me obrigo a esperar. Então outro. Durante o próximo par de horas, eu tomo metade da garrafa. Então um segundo. Preparo outra antes de me retirar para uma árvore onde eu continuo bebericando, comendo coelho e até mesmo um dos meus preciosos biscoitos.
No momento que o hino toca, sinto-me consideravelmente melhor. Não há rostos essa noite, nenhum tributo morreu hoje. Amanhã eu ficarei aqui, descansando, camuflando minha mochila com lama, pegando alguns daqueles pequenos peixes que vi enquanto bebia, desenterrando as raízes do aguapé para fazer uma boa refeição. Eu me aconchego debaixo do meu saco de dormir, segurando minha garrafa de água como se fosse minha própria vida, que, é claro, é.
Umas poucas horas depois, um barulho de pés me balança do meu sono. Eu olho ao redor em confusão. Ainda não amanheceu, mas meus doloridos olhos podem ver.
Seria difícil não perceber a parede de fogo descendo sobre mim.
Meu primeiro impulso é descer da árvore, mas eu estou amarrada. De algum modo, meus dedos tateando soltam a fivela e eu caio no chão num amontoado, ainda embrulhada em meu saco de dormir. Não há tempo para qualquer tipo de arrumação. Felizmente, minha mochila e garrafa de água já estão no saco. Eu empurro a fivela, hasteio o saco sobre meu ombro e fujo.
O mundo se transformou em chamas e fumaça. Galhos queimando explodem das árvores e caem em chuvas de faíscas aos meus pés. Tudo o que posso fazer é seguir os outros, os coelhos e veados e eu até mesmo avisto uma matilha de cachorros selvagens disparando pela floresta. Eu confio no sentido de direção deles porque seu instinto é mais aguçado que o meu. Mas eles são muito mais velozes, voando pelo matagal tão graciosamente enquanto minhas botas enroscam em raízes e troncos caídos de árvores, e não há maneira de eu acompanhá-los.
O calor é horrível, mas pior que o calor é a fumaça, que ameaça me sufocar a qualquer momento. Puxo minha camiseta sobre meu nariz, grata por encontrá-la ensopada com suor, e ela me oferece um fino véu de proteção. E eu corro, sufocando, meu saco batendo contra minhas costas, meu rosto cortado com os galhos que se materializam sem aviso do nevoeiro cinza, porque eu sei que devo correr.
Essa não é nenhuma fogueira de tributo que saiu de controle, nenhuma ocorrência acidental. As chamas que pressionam sobre mim tem uma altura anormal, uma uniformidade que as marca como feitas por humanos, feitas por máquinas, feitas por Gamemakers. As coisas estavam quietas demais hoje. Nenhuma morte, talvez nem mesmo uma luta. A audiência na Capital estaria se entediando, clamando que esses Jogos estavam a beira de serem sonolentos. Isso é uma coisa que os Jogos não podem ser.
Não é difícil seguir a motivação dos Gamemakers. Há o bando dos Carreiristas e então há o resto de nós, provavelmente espalhados longe e escassamente pela arena. Esse fogo foi designado para nos revelar, para nos atrair. Pode não ser o dispositivo mais original que eu já havia visto, mas é muito, muito eficiente.
Eu pulo por sobre um tronco em chamas. Não alto o bastante. A ponta final da minha jaqueta pega fogo e eu tenho que parar para arrancá-la do meu corpo e extirpar as chamas. Mas não ouso deixar a jaqueta, queimada e ardendo como estava, eu arrisco enfiá-la no meu saco de dormir, esperando que a falta de ar sufoque o que eu não extingui. Isso é tudo que eu tenho, o que eu carrego nas costas, e é pouco para se sobreviver.
Em uma questão de minutos, minha garganta e nariz estavam queimando. A tosse começou logo depois e meus pulmões começaram a parecer que realmente estavam sendo cozinhados. Desconforto transformou-se em agonia até que cada respiração mandava uma dor abrasadora pelo meu peito. Eu consigo me abrigar debaixo de uma pedra brotando bem quando o vômito começou, e eu perco minha janta escassa e o pouco de água que sobrou no meu estômago. Agachando de quatro, eu forço o vômito até que não tenha sobrado nada para subir.
Sei que preciso continuar me mexendo, mas estou tremendo e tonta agora, arfando por ar. Eu me permito uma colherada de água para limpar minha boca e cuspir, então tomo alguns goles da minha garrafa.
Você tem um minuto, digo a mim mesma. Um minuto para descansar. Eu tomo tempo para reordenar meus suprimentos, estofar o saco de dormir e desordenadamente enfiar tudo na mochila.
Meu minuto acabou. Eu sei que é hora de me mexer, mas a fumaça encobriu meus pensamentos. Os animais de pernas ligeiras que eram a minha bússola me deixaram para trás. Eu sei que não estive nessa parte da floresta antes, não havia pedras de tamanho considerável como essa na qual estou me abrigando nas minhas viagens anteriores.
Para onde os Gamemakers estão me levando? De volta para o lago? Para um terreno totalmente novo cheio de novos perigos? Eu tinha acabado de encontrar algumas horas de paz na poça quando esse ataque começou. Haveria algum jeito de eu viajar paralelamente ao fogo e conseguir voltar para cá, para enfim uma fonte de água?
A parede de fogo devia ter um fim e não queimaria indefinitivamente. Não porque os Gamemakers não pudessem mantê-la queimando, mas porque, novamente, isso chamaria acusações de tédio da audiência. Se eu conseguisse voltar para trás da linha de fogo, eu conseguiria evitar encontrar os Carreiristas. Eu tinha acabado de decidir tentar e voltar, apesar de precisar de quilômetros de viagem para longe do inferno e então uma rota muito tortuosa de volta, quando a primeira bola de fogo explode na pedra a cerca de sessenta centímetros da minha cabeça. Eu salto de debaixo do meu leito, energizada por medo renovado.
O jogo deu uma virada. O fogo era só para nos fazer mover, agora a audiência verá uma diversão de verdade. Quando eu ouço o próximo sibilo, me abaixo no chão, não tomando o tempo para olhar. A bola de fogo atinge uma árvore à minha esquerda, engolfando-a em chamas. Permanecer parada é morrer. Mal estou de pé quando a terceira bola atinge o chão onde estava deitada, mandando uma pilastra de fogo atrás de mim. O tempo perde o significado agora que eu tento freneticamente desviar dos ataques. Não consigo ver de onde estão sendo mandados, mas não é um aerobarco. Os ângulos não são extremos o bastante. Provavelmente todo esse segmento da floresta foi armado com lançadores de precisão que estão escondidos em árvores ou pedras. De algum lugar, em uma sala gelada e imaculada, um Gamemaker está sentado com um par de controles, os dedos no gatilho que poderiam acabar com a minha vida em um segundo. Tudo o que precisa é um golpe direto.
Qualquer plano vago que eu tinha concebido em relação a retornar para a minha poça é apagado da minha mente enquanto eu ziguezagueio e salto para evitar bolas de fogo. Cada uma é somente do tamanho de uma maçã, mas engloba um poder tremendo em contato. Cada sentido que eu tenho fica em sobrecarga à medida que a necessidade de sobreviver toma conta. Não há tempo para julgar se um movimento é o correto. Quando há um sibilo, eu ajo ou morro.
Algo me mantém movendo para frente, contudo. Toda uma vida de assistir os Jogos Vorazes me informa que certas áreas da arena são equipadas para certos ataques. E que se eu conseguir simplesmente sair dessa seção, eu talvez consiga sair do alcance dos lançadores. Eu talvez também possa então cair diretamente numa sepultura de víboras, mas não posso me preocupar com isso agora.
Por quanto tempo eu me arrastei desviando das bolas de fogo, não sei dizer, mas os ataques finalmente começam a diminuir. O que é bom, porque eu novamente estou tendo ânsias. Dessa vez é uma substância ácida que escalda a minha garganta e acha caminho até o meu nariz também.
Sou forçada a parar enquanto meu corpo convulsiona, tentando desesperadamente se livrar dos venenos que estive sugando durante o ataque. Eu espero pelo próximo sibilo, o próximo sinal para fugir. Não vem. A força da ânsia espremeu lágrimas dos meus olhos doloridos. Minhas roupas estão ensopadas em suor. De algum modo, através da fumaça e do vômito, eu capturo o cheiro de cabelo queimado. Minhas mãos remexem minha trança e descobrem que uma bola de fogo cauterizou pelo menos quinze centímetros dela. Mechas de cabelo escuro esfarelam nos meus dedos. Eu encaro-as, fascinada pela transformação quando o sibilo é registrado.
Meus músculos reagem, só que não rápidos o bastante dessa vez. A bola de fogo atinge o chão do meu lado, mas não antes de derrapar pela minha panturrilha direita. Vendo a perna da minha calça pegando fogo me faz pirar. Eu giro e corro para trás de quatro, esperneando, tentando me retirar do horror.
Quando finalmente tenho-me sob o mínimo de controle, rolo a perna para frente e para trás no chão, o que sufoca a pior parte. Mas então, sem pensar, eu rasgo o tecido restante com as minhas próprias mãos.
Eu sento no chão, a alguns metros do calor emanado da bola de fogo. Minha panturrilha está gritando, minhas mãos cobertas por açoites vermelhos. Estou tremendo demais para me mover. Se os Gamemakers quiserem me finalizar, agora é a hora.
Eu ouço a voz de Cinna, carregando imagens de tecidos ricos e pedras preciosas brilhantes. “Katniss, a garota em chamas.” Que risada gostosa os Gamemakers deviam estar dando dessa. Talvez, as lindas vestimentas de Cinna tenham até mesmo trazido essa tortura particular para mim. Eu sei que ele não podia ter previsto isso, deve estar sofrendo por mim, porque, de fato, acredito que ele gosta de mim. Mas no todo, talvez aparecer completamente pelada naquela carruagem tivesse sido mais seguro.
O ataque agora tinha acabado. Os Gamemakers não me querem morta. Ainda não, de qualquer maneira. Todos sabem que eles poderiam destruir todos nós em um segundo após o gongo de abertura. O esporte real do Jogos Vorazes é observar os tributos matando uns aos outros. De vez em quando, eles matam um tributo só para lembrar aos jogadores que eles podem. Mas na maioria, eles nos manipulam para confrontar uns aos outros cara-a-cara. O que quer dizer que, se não estão mais atirando em mim, tem pelo menos outro tributo próximo.
Eu me arrastaria para uma árvore e me acobertaria agora se pudesse, mas a fumaça ainda está grossa o bastante para me matar. Eu me faço ficar de pé e começo a mancar para longe da parede de chamas que ilumina o céu. Parece não estar mais me perseguindo, exceto com suas nuvens pretas fedorentas.
Outra luz, a do dia, começa a emergir suavemente. Giros de fumaça capturam os raios solares. Minha visibilidade é pobre. Eu consigo ver talvez treze metros em qualquer direção. Um tributo podia facilmente estar escondido de mim daqui. Eu devia puxar minha faca como precaução, mas duvido da minha habilidade de segurá-la por muito tempo.
A dor nas minhas mãos não pode de jeito algum competir com a da minha panturrilha. Eu odeio queimaduras, sempre as odiei, mesmo uma pequena adquirida quando puxava uma fornada de pão do forno. É o pior tipo de dor para mim, mas eu nunca experenciei nada como isso.
Estou tão cansada que nem ao menos noto que estou no lago até estar até o tornozelo. É alimentada por uma nascente, borbulhando de uma fenda em algumas pedras, e agradavelmente gelada. Enfio minhas mãos na água rasa e sinto alívio instantâneo. Não é isso que minha mãe sempre diz? O primeiro tratamento para uma queimadura é água gelada? Que reduz o calor? Mas ela queria dizer queimaduras menores. Provavelmente ela recomendaria isso para as minhas mãos. Mas e quanto à minha panturrilha? Apesar de eu não ter tido coragem ainda de examiná-la, suponho que seja um ferimento de um nível totalmente diferente.
Eu deito de barriga na beirada do lago por um tempo, balançando minhas mãos na água, examinando as pequenas chamas em minhas unhas que estavam começando a descascar. Ótimo. Já tive fogo o bastante por uma vida.
Eu lavo o sangue e as cinzas do meu rosto. Tento relembrar tudo o que sei sobre queimaduras. São ferimentos comuns na Costura, onde cozinhamos e aquecemos nossas casas com carvão. Então há os acidentes nas minas... Uma família uma vez trouxe um jovem inconsciente implorando para minha mãe ajudá-lo. O médico do distrito que é responsável por tratar os minerados tinha descartado-o, dito a família para levá-lo para casa para morrer. Mas eles não aceitavam isso. Ele ficou deitado na mesa da nossa cozinha, inteiramente desacordado. Eu vislumbrei o ferimento em sua coxa, carne aberta e carbonizada, queimada até o osso, antes que eu fugisse de casa. Fui para a floresta e cacei o dia todo, assombrada pela terrível perna, as memórias da morte do meu pai. O que foi engraçado é que, Prim, que tem medo de sua própria sombra, ficou e ajudou. Minha mãe diz que curandeiros nascem, e não são feitos. Elas fizeram seu melhor, mas o homem morreu, justamente como o médico tinha dito.
Minha perna precisa de atenção, mas eu ainda não consigo olhar para ela. E se for tão ruim quanto do homem e eu conseguir ver o meu osso? Então eu lembro da minha mãe dizendo que se uma queimadura é severa, a vítima podia nem ao menos sentir dor, porque os nervos estariam destruídos. Encorajada por isso, eu me sento e balanço a perna na minha frente.
Eu quase desmaio ao ver a minha panturrilha. A carne é um vermelho brilhante coberto com bolhas. Eu me forço a tomar fôlegos profundos e vagarosos, sentindo-me bem certa que as câmeras estão no meu rosto. Eu não posso mostrar fraqueza com esse ferimento. Não se eu quiser ajudar. Pena não te dá ajuda. Admiração por sua recusa em ceder te dá.
Corto o restante da perna da calça no joelho e examino o ferimento mais de perto. A área queimada é cerca do tamanho da minha mão. Nenhuma pele está preta. Acho que não é tão ruim para ensopar. Cuidadosamente, estiquei minha perna no lago, sustentando o calcanhar da minha bota numa pedra para que o couro não ficasse muito encharcado, e suspiro, porque isso oferecia mesmo algum alívio. Eu sei que há ervas, se eu conseguisse achá-las, que acelerariam a cura, mas eu não consigo exatamente lembrar. Água e tempo serão provavelmente tudo que eu terei com o que trabalhar.
Eu deveria estar me mexendo? A fumaça está lentamente dissipando, mas ainda é pesada demais para ser saudável. Se eu continuar longe do fogo, eu não estarei andando diretamente para as armas dos Carreiristas? Além do mais, toda vez eu levanto minha perna da água, a dor ressalta tão intensamente que tenho que deslizar para dentro de novo. Minhas mãos estão ligeiramente menos exigentes. Elas conseguem aguentar pequenos intervalos fora do lago.
Então eu lentamente coloco o motor de volta em ação. Primeiramente eu encho minha garrafa com a água do lago, trato-a, e quando tempo o bastante passou, começo a reidratar meu corpo. Após um tempo, me forço a mordiscar uma bolacha de água e sal, o que ajuda a acalmar meu estômago. Enrolo meu saco de dormir. Exceto por algumas marcas pretas, está relativamente incólume. Minha jaqueta é outro assunto. Fedendo e queimada, pelo menos trinta centímetros nas costas não havia conserto algum. Eu corto a área danificada, ficando com uma vestimenta que fica simplesmente no final das minhas costelas. Mas o capuz está intacto e é bem melhor do que nada.
Apesar da dor, o entorpecimento começa a tomar conta. Eu iria para uma árvore e tentaria descansar, exceto que eu seria facilmente avistada. Além do mais, abandonar meu lago seria impossível. Eu arrumo organizadamente meus suprimentos, até mesmo coloco a mochila nos meus ombros, mas não consigo partir.
Avisto algumas plantas aquáticas com raízes comestíveis e faço uma pequena refeição com meu último pedaço de coelho. Tomo um gole de água. Observo o sol fazer um vagaroso arco pelo céu. Onde eu iria, de qualquer jeito, que fosse mais seguro que aqui? Eu recuo sobre meu saco, sobrecarregada por sonolência.
“Se os Carreiristas me querem, que eles me achem”, penso antes de ser levada em um estupor. Que eles me achem.
E eles me acham. É uma sorte eu estar pronta para me mover, porque quando ouço os passos, eu tenho menos de um minuto de dianteira.
A noite começou a cair. No momento em que acordo, estou de pé e correndo, respingando pelo lago, voando sobre os matagais. Minha perna me desacelera, mas sinto que meus perseguidores não são tão velozes quanto o fogo. Ouço suas tossidas, suas vozes ásperas chamando uns aos outros.
Ainda assim, eles estão me cercando, bem como um bando de cachorros selvagens, então faço o que fiz minha vida toda em tais circunstâncias. Eu escolho uma árvore alta e começo a escalar.
Se correr dói, escalar é agonizante, porque requere não só esforço, mas contato direto das minhas mãos na casca da árvore. Eu sou rápida, contudo, e na hora que eles alcançaram a base do meu tronco, estou a seis metros de altura. Por um instante, nós paramos e inspecionamos um ao outro. Espero que eles não consigam ouvir o martelar do meu coração.
Pode ser agora, penso. Que chance eu tenho contra eles? Todos os seis estão aqui, os cinco Carreiristas e Peeta, e minha única consolação é que eles estão bem acabados, também.
Mesmo assim, olhe para as armas deles. Olhe para os rostos deles, sorrindo maliciosamente e rosnando para mim, uma morte certa acima deles. Parece bastante desesperançoso. Mas então outra coisa é assimilada. Eles são maiores e mais fortes que eu, sem dúvida, mas também são mais pesados. Há uma razão por ser eu e não Gale a se arriscar a arrancar as frutas mais altas, ou roubar os ninhos de pássaro mais remotos. Eu devo pesar pelo menos vinte dois ou vinte e sete quilos a menos que o menor dos Carreiristas.
Agora eu sorrio.
— Como vocês estão?  chamo alegremente.
Isso os deixa desconcertados, mas eu sei que a multidão irá amar.
— Bem o bastante  diz o garoto do Distrito 2. — E você?
— Está um pouco quente pro meu gosto — respondo. Eu quase consigo ouvir a risada na Capital. — O ar é melhor aqui em cima. Por que você não sobe?
— Acho que irei  diz o mesmo garoto.
— Aqui, tome isso, Cato  diz a garota do Distrito 1, e ela lhe oferece o arco prateado e a caixa de flechas.
Meu arco! Minhas flechas! Só a visão deles me deixa tão nervosa que eu quero gritar, comigo mesma, com o traidor do Peeta por me distrair de pegá-los. Eu tento fazer contato visual com ele agora, mas ele parece estar intencionalmente evitando o meu olhar enquanto lustra sua faca com a bainha de sua camiseta.
— Não  diz Cato, empurrando o arco. — Eu ficarei melhor com a minha espada.
Eu consigo ver a arma, uma lâmina pequena e pesada em seu cinto.
Dou a Cato tempo de examinar a árvore antes de eu começar a escalar novamente. Gale sempre diz que eu o lembro um esquilo, do jeito que eu consigo subir até mesmo o galho mais delgado. Parte disso é por causa do meu peso, mas parte é por prática. Você tem que saber onde colocar suas mãos e pés. Já estou a mais nove metros acima quando ouço o estrondo e olho para baixo para ver Cato sacudindo-se violentamente enquanto ele e o galho caem. Ele acerta o chão com força e estou esperando que ele possivelmente tenha quebrado seu pescoço quando ele se levanta novamente, xingando como um demônio.
A garota com as flechas, Glimmer eu ouço alguém chamá-la – credo, os nomes que as pessoas no Distrito 1 dão a seus filhos são tão ridículos – de qualquer modo, Glimmer escala a árvore até que os galhos começam a quebrar sob seus pés e então tem o bom senso de parar.
Estou a pelo menos vinte e quatro metros de altura agora. Ela tenta atirar em mim e fica evidente de imediato que ela é incompetente com um arco. Uma das flechas, contudo, fica alojada na árvore próxima a mim e consigo pegá-la. Eu a aceno provocativamente acima de sua cabeça, como se esse fosse o único propósito de recuperá-la, quando na verdade eu quero usá-la se eu tiver a chance de fazê-lo. Eu poderia matá-los, cada um deles, se aquelas armas prateadas estivessem em minhas mãos.
Os Carreiristas se reagrupam no chão e eu consigo ouvi-los rosnando conspiratoriamente entre si, furiosos por eu tê-los feito parecer tolos. Mas o crepúsculo chegou e sua janela para me atacar está se fechando. Finalmente, ouço Peeta dizer severamente:
— Ah, deixe que ela fique lá em cima. Não é como se ela fosse a algum lugar. Nós lidaremos com ela de manhã.
Bom, ele está certo sobre uma coisa. Eu não vou a lugar algum. Todo o alívio da água do lago se foi, deixando-me sentir a potência total das minhas queimaduras. Eu desço para uma forquilha na árvore e desajeitadamente preparo minha cama. Coloco minha jaqueta. Deito meu saco de dormir. Me amarro e tento me impedir de gemer. O calor do saco é demais para a minha perna. Faço um corte no tecido e pairo minha panturrilha no ar. Eu pingo água no ferimento e nas minhas mãos.
Toda a minha bravata se foi. Estou fraca da dor e faminta, mas não consigo me forçar a comer. Mesmo que eu consiga sobreviver à noite, o que a manhã trará? Eu encaro a folhagem tentando me forçar a descansar, mas as queimaduras proíbem isso.
Pássaros estão se preparando para a noite, cantando canções de ninar para seus filhotes. Criaturas da noite emergem. Uma coruja pia. O fraco odor de gambás corta a fumaça. Os olhos de algum animal me espreitam de uma árvore vizinha – talvez um gambá – capturando a chama das tochas dos Carreiristas.
De repente, estou apoiada em um cotovelo. Esses não são olhos de gambá, conheço muito bem sua reflexão envidraçada. De fato, esses não são nem ao menos olhos de animais. Nos últimos raios turvos de luz, eu a vejo, observando-me silenciosamente entre os galhos. Rue.
Por quanto tempo ela estava aí? O tempo todo, provavelmente. Parada e invisível enquanto a ação se desdobrava na frente dela. Talvez ela tenha se dirigido para sua árvore pouco antes de mim, escutando que o bando estava tão perto.
Por um tempo nós seguramos os olhares uma da outra. Então, sem nem ao menos o farfalhar de uma folha, sua pequena mão desliza para fora e aponta para algo acima da minha cabeça.
Meus olhos seguem a linha do seu dedo apontado para a folhagem acima de mim. No início, não tenho ideia de para o que ela esteja apontando, mas então, uns 13 metros acima, percebo a vaga forma na luz turva.
Mas de... de quê? Algum tipo de animal? Parece do tamanho de um guaxinim, mas está pendurado no galho, oscilando sempre ligeiramente. Há algo mais. Entre os sons noturnos familiares de uma floresta, meus ouvidos registram um baixo zumbido. Então percebo. É um ninho de vespas.
Medo me atravessa, mas eu tenho juízo suficiente de continuar parada. Depois de tudo, não sei que tipo de vespas vivem ali. Poderia ser o tipo comum deixe-nos-em-paz-e-nós-deixaremos-vocês-em-paz. Mas esses são os Jogos Vorazes, e comum não é a regra. É mais provável que elas sejam uma das mutações da Capital, as teleguiadas.
Como os jabberjays, aquelas vespas assassinas foram criadas em laboratório e posicionadas estrategicamente, como um campo minado, em torno dos distritos durante a guerra. Maiores do que as vespas normais, elas têm um sólido corpo especial de ouro e uma picada que gera um nódulo do tamanho de uma ameixa. A maior parte das pessoas não consegue tolerar mais que poucas picadas. Algumas morrem na primeira. Se você viver, as alucinações trazidas pelo veneno podem levar as pessoas à loucura. E há outra coisa, essas vespas vão caçar qualquer um que incomode seu ninho, atacá-lo e até matá-lo. É de onde a parte do nome “guiadas” vem.
Depois da guerra, a Capital destruiu todos os ninhos ao redor de suas cidades, mas os próximos aos distritos foram deixados intocados. Outro lembrete de nossa fraqueza, suponho, bem como os Jogos Vorazes. Outra razão para se manter dentro da cerca do Distrito 12. Quando Gale e eu chegávamos perto de um ninho de teleguiadas, nós imediatamente caminhávamos para a direção oposta.
Então é isso que está pendurado sobre mim? Olho de volta para Rue por ajuda, mas ela evaporou na sua árvore.
Dada as circunstâncias, penso que não importa que tipo de ninho de vespa é. Estou ferida e emboscada. A escuridão me dá um breve adiamento, mas no momento em que o sol subir, os Carreiristas formularão um plano para me matar. Não tem chance de eles fazerem de outra forma depois que eu os fiz parecerem estúpidos. Aquele ninho pode ser a única opção que eu tenho. Se eu pudesse derrubá-lo em cima deles, poderia ser capaz de escapar. Mas eu arriscaria minha vida no processo.
É claro, nunca serei capaz de me aproximar do ninho o bastante para soltá-lo. Terei que serrar o galho do tronco e mandar toda a coisa para baixo. A parte dentada da minha faca deve ser capaz de fazer isso. Mas minhas mãos seriam? E a vibração da serração levantará o enxame? E se os Carreiristas descobrirem o que estou fazendo e moverem seu acampamento? Isso iria acabar com todo o propósito.
Noto que a melhor chance que terei de fazer a serração sem ser notada será durante o hino. Que pode começar a qualquer instante. Arrasto-me para fora do meu saco, asseguro-me que minha faca está no meu cinto, e começo o meu caminho acima na árvore.
Isso em si é perigoso, visto que os galhos estão se tornando precariamente finos até para mim, mas persevero. Quando alcanço o galho que suporta o ninho, o zumbido se torna mais distintivo. Mas ainda é estranhamente fraco, se essas forem teleguiadas. É a fumaça, penso. Os sedaram. Essa foi uma das defesas que os rebeldes encontraram para combater as vespas.
O selo do Capital brilha acima de mim e o hino ruge. É agora ou nunca, penso, e começo a serrar.
Bolhas estouram na minha mão direita enquanto eu desajeitadamente arrasto a faca para trás e para frente. Logo que eu pego o entalhe, o trabalho requer menos esforço, mas é quase mais do que posso lidar. Cerro meus dentes e olho para o céu ocasionalmente para registrar se houve alguma morte hoje.
Está certo. A audiência ficará satisfeita me vendo machucada e forçada a subir nas árvores e com um grupo abaixo de mim. Mas o hino está acabando e estou apenas a três quartos do caminho pela madeira quando a música acaba, o céu fica escuro e sou forçada a parar.
E agora? Poderia provavelmente terminar o trabalho pela sensação do tato, mas esse pode não ser o plano mais esperto. Se as vespas estão muito debilitadas, se o ninho cair, se eu tentar escapar, isso tudo pode ser uma perda fatal de tempo. Melhor, penso, esgueirar-se aqui de madrugada e mandar o ninho para os inimigos.
Na luz fraca das tochas dos Carreiristas, movimento-me de volta para minha bifurcação para achar a melhor surpresa que eu já tive. Sobre meu saco de dormir está um pequeno pote de plástico preso a um paraquedas prateado. Meu primeiro presente de um patrocinador!
Haymitch deve ter mandando durante o hino. O pote cabe facilmente na palma da minha mão. O que pode ser? Não comida, com certeza. Desaperto a tampa e sei pelo cheiro que é remédio. Cautelosamente, examino a superfície do remédio. A pulsação nas pontas dos meus dedos some.
— Ah, Haymitch  sussurro. — Obrigada.
Ele não me abandonou. Nem me deixou para defender-me sozinha. O custo desse remédio deve ter sido astronômico. Provavelmente não um, mas vários patrocinadores contribuíram para comprar esse pequeno pote. Para mim, era sem preço.
Mergulho dois dedos no pote e espalho o bálsamo sobre minha panturrilha. O efeito é quase mágico, apagando a dor em contato, deixando uma agradável sensação fria. Isso não é a mistura de ervas que minha mãe tritura das plantas da floresta, é medicamento de alta tecnologia fabricado em laboratórios da Capital.
Quando minha panturrilha está tratada, esfrego uma camada fina em minhas mãos. Depois de empacotar o pote no paraquedas, guardo-o seguro na minha mochila. Agora que a dor se tranquilizou, é tudo que posso fazer para me reposicionar no saco antes de dormir.
Um pássaro que aterrissou apenas há alguns metros de mim me alerta que um novo dia está amanhecendo. Na luz cinza da manhã, examino minhas mãos. O remédio transformou todas as manchas vermelhas e irritadas em uma pele de bebê macia e rosa. Minha perna ainda está inflamada, mas a queimação é muito menor. Aplico uma nova camada de remédio e silenciosamente pego minhas coisas. O que quer que aconteça, vou ter que me mexer, e mexer rápido. Também como um biscoito e uma fatia de carne e tomo alguns goles de água.
Quase nada ficou no meu estômago ontem, e já estou começando a sentir os efeitos da fome.
Abaixo de mim, posso ver o grupo de Carreiristas e Peeta dormindo no chão. Por sua posição, inclinada contra o tronco da árvore, penso que Glimmer ficou responsável pela guarda, mas a fadiga a venceu.
Meus olhos apertam enquanto tentam esquadrinhar a árvore próxima a mim, mas não posso perceber Rue. Visto que ela me deu a dica, parece justo avisá-la. Além disso, se vou morrer hoje, é Rue quem quero que ganhe. Mesmo que isso signifique um pouco de comida extra para minha família, a ideia de Peeta sendo coroado vencedor é insuportável.
Chamo o nome de Rue num sussurro quieto e os olhos aparecem, arregalados e alertas, imediatamente. Ela aponta para o ninho novamente. Seguro minha faca e faço o movimento da serração. Ela acena e desaparece.
Há um farfalho na árvore mais próxima. Então o mesmo som de novo um pouco além. Percebo que ela está pulando de árvore em árvore. Tudo o que posso fazer é não rir alto. Foi isso o que ela mostrou para os Gamemakers? Imagino-a voando ao redor do salão de treino nunca tocando o chão. Deveria ter conseguido pelo menos um dez.
Listras rosadas aparecem ao leste. Não posso me dar ao luxo de esperar mais. Comparada a agonia da subida de ontem à noite, essa é moleza. No ramo da árvore que segura o ninho, posiciono minha faca no entalhe e estou começando a puxar os dentes pela madeira quando vejo algo se movendo.
Lá, no ninho. O brilho dourado de teleguiadas fazendo preguiçosamente o seu caminho através da superfície cinza parecida com papel. Sem dúvida, está agindo um pouco mole, mas as vespas estão em cima e se movendo, e isso significa que os outros logo estarão fora também.
Suor parece nas palmas das minhas mãos, espumando pelo remédio, e faço o melhor para secá-las na minha camisa. Se eu não partir esse galho em questão de segundos, o enxame inteiro pode emergir e me atacar.
Não tem sentido ficar adiando. Respiro fundo, pego o cabo da faca e forço para baixo o mais forte que posso. Para trás, para frente, para trás, para frente!
As teleguiadas começam a zunir e temo que elas estejam vindo.
Para trás, para frente, para trás, para frente!
Uma dor aguda dispara pelo meu joelho e percebo que um me encontrou e os outros virão logo. Para trás, para frente, para trás, para frente. E logo quando a faca atravessa, arremesso o final do galho o mais longe que posso. Ele cai através dos galhos mais baixos, esbarrando temporariamente em alguns poucos, mas então se deforma até romper com uma pancada no chão.
O inchaço. A dor. O líquido. Assistir Glimmer se debater até a morte no chão. É demais para lidar antes mesmo de o sol clarear o horizonte. Não quero pensar em como Glimmer deve parecer agora. Seu corpo desfigurado. Seus dedos inchados endurecidos ao redor do arco...
O arco! Em algum lugar na minha mente confundida, um pensamento se conecta a outro e estou de pé, balançando-me através das árvores de volta para Glimmer.
O arco. As flechas. Devo pegá-los. Não escutei os disparos dos canhões ainda, então talvez Glimmer esteja em algum tipo de coma, seu coração ainda lutando contra o veneno das vespas. Mas assim que ele parar e os canhões sinalizarem sua morte, um aerobarco aparecerá e retomará seu corpo, tirando o único arco e aljava que vi nos Jogos. E me recuso a deixar escapá-los pelos meus dedos novamente!
Alcanço Glimmer logo quando os canhões disparam. As teleguiadas sumiram. Essa garota, bela de forma impressionante no seu vestido dourado na noite das entrevistas, está irreconhecível. Suas feições erradicadas, seus membros três vezes maior que o tamanho normal. Os inchaços das picadas já começaram a explodir, emitindo líquido verde putrefato ao seu redor. Tenho que quebrar alguns dos que costumavam ser seus dedos com uma pedra para libertar o arco. A aljava de flechas está presa sob suas costas. Tento girar seu corpo puxando um braço, mas a carne desintegra-se em minhas mãos e caio no chão.
Isso é real? Ou as alucinações começaram? Esfrego meus olhos apertados e tento respirar pela minha boca, ordenando-me a não ficar doente. Café da manhã deve ficar no estômago, pode ser dias antes de eu caçar novamente.
O segundo canhão dispara e estou achando que a garota do Distrito 4 acabou de morrer. Ouço os pássaros ficarem silenciosos e então um dá um grito de aviso, o que significa que aerobarco está para aparecer.
Confusa, penso que é para Glimmer, embora isso não faça sentido porque ainda estou no painel, ainda brigando pelas flechas. Eu inclino para trás sobre meus joelhos e as árvores ao meu redor começam a rodar em círculos. No meio do céu, localizo o aerobarco. Atiro-me sobre o corpo de Glimmer como se fosse protegê-lo, mas então vejo a garota do Distrito 4 sendo elevada no ar e sumindo.
— Faça isso! — eu me ordeno.
Apertando minha mandíbula, empurro minhas mãos sob o corpo de Glimmer, segurando o que deve ser sua caixa torácica, e a forçando sobre seu estômago. Não posso evitar, estou respirando rapidamente agora, a coisa toda tão aterrorizante e estou perdendo minha noção do que é real. Puxo as flechas prateada, mas ela está presa em alguma coisa, sua omoplata, alguma coisa, e finalmente a solto. Estou colocando a aljava com meus braços quando ouço passos, alguns passos, vindo pelos arbustos, e percebo que os Carreiristas estão voltando. Eles estão voltando para me matar ou pegar suas armas, ou ambos.
Mas é muito tarde. Puxo uma flecha pegajosa da bainha e tento posicioná-la na corda do arco, mas em vez de uma corda vejo três e o cheiro das cordas é tão repulsivo que não sou capaz de fazer. Não sou capaz. Não sou capaz.
Estou desamparada quando o primeiro caçador movimenta-se através das árvores, lança levantada, posicionada para atirar. O choque no rosto de Peeta não faz sentido para mim. Espero o golpe. Em vez disso seu braço cai do seu lado.
— O que você ainda está fazendo aqui?  ele sibila para mim.
Encaro sem compreender enquanto uma gota de água pinga do ferrão sob seu ouvido. Todo o seu corpo começa a cintilar como se ele tivesse mergulhado no orvalho.
— Você está louca?
Ele está me empurrando com o cabo da lança agora.
— Levante! Levante!
Levanto, mas ele ainda está me empurrando. O quê? O que está acontecendo? Ele me empurra para longe dele rudemente.
— Corra!  ele grita. — Corra!
Atrás dele, Cato corta seu caminho pelos galhos. Ele está molhado, também, e ferroado gravemente sob um olho. Pego o brilho da luz do sol em sua espada e faço como Peeta diz. Segurando apertado meu arco e flechas, batendo em árvores que aparecem do nada, tropeçando e caindo enquanto tento me equilibrar.
Ultrapasso minha poça e entro numa floresta não familiar. O mundo começa a se dobrar de forma alarmante. Uma borboleta incha até o tamanho de uma casa então se despedaça em milhões de estrelas. Árvores se transformam em sangue e salpicam minhas botas. Formigas começam a rastejar para fora das bolhas em minhas mãos e não consigo me livrar delas. Elas sobem pelos meus braços, meu pescoço.
Alguém está gritando, um grito longo, alto e agudo que nunca para para respirar. Tenho a vaga ideia de que talvez seja eu. Tropeço e caio em um buraco forrado com minúsculas bolhas laranja que zumbem como o ninho de teleguiadas. Dobrando meus joelhos até meu queixo, espero pela morte.
Nauseada e desorientada, sou capaz de formar apenas um pensamento. Peeta Mellark acabou de salvar a minha vida.
Então as formigas perfuram meus olhos e eu perco os sentidos.
Eu entro em um pesadelo, do qual acordo repetitivamente só para encontrar um terror maior me aguardando. Todas as coisas que mais temo, todas as coisas que eu temo pelos outros se manifestam em detalhes tão vívidos que não posso evitar acreditar que sejam reais.
Cada vez que eu acordo, eu penso, Por fim, isso acabou, mas não acabou. É só o começo de um novo capítulo de tortura. De quantas maneiras que observo Prim morrer? Revivo os últimos instantes do meu pai? Sinto o meu próprio corpo ser despedaçado? Essa é a natureza do veneno das teleguiadas, tão cuidadosamente criadas para alvejar o lugar onde o medo vive no seu cérebro.
Quando finalmente volto a mim, fico deitada quieta, esperando pelo próximo ataque de imagens. Mas eventualmente aceitei que o veneno deve ter finalmente saído do meu sistema, deixando meu corpo quebrado e fraco.
Ainda estou deitada de lado, presa na posição fetal. Eu levanto uma mão até meus olhos para achá-los seguros, intocados por formigas que nunca existiram. Simplesmente esticar meus membros requisita um esforço enorme. Tantas partes de mim doem, não parece que vale a pena fazer um inventário delas.
Muito, muito lentamente eu consigo me sentar. Estou num buraco raso, não cheio de bolhas laranjas zumbindo da minha alucinação, mas com folhas velhas e mortas. Minhas roupas estão úmidas, mas não sei se a causa era água da lagoa, orvalho, chuva ou suor. Por um longo tempo, tudo o que consigo fazer é tomar pequenos goles da minha garrafa e observar um besouro rastejar pela lateral de um arbusto de madressilva.
Por quanto tempo fiquei desacordada? Era manhã quando perdi a razão. Agora era de tarde. Mas a dureza nas minhas juntas sugeria que mais de um dia tinha passado, possivelmente até dois. Se sim, eu não teria jeito de saber quais tributos tinha sobrevivido àquele ataque das teleguiadas. Nem a Glimmer ou a garota do Distrito 4. Mas havia o garoto do Distrito 1, ambos os tributos do Distrito 2 e Peeta. Eles morreram das picadas? Certamente, se sobreviveram, seus últimos dias devem ter sido tão horríveis quanto os meus próprios. E quanto à Rue? Ela é tão pequena, não seria preciso muito veneno para domá-la. Mas também... as teleguiadas teriam que pegá-la, e ela tinha tido uma boa dianteira.
Um gosto ruim e podre penetra a minha boca, e a água tem pouco efeito nisso. Eu me arrasto até o arbusto de madressilva e arranco uma flor. Gentilmente puxo o estame da flor e coloco a gota de néctar na minha língua. A doçura se espalha pela minha boca e garganta, aquecendo minhas veias com lembranças do verão, a floresta da minha casa e a presença de Gale ao meu lado. Por alguma razão, nossa discussão daquela última manhã volta até mim.
— Nós poderíamos fazer, sabe.
— O quê?
— Deixar o distrito. Fugir. Viver na floresta. Você e eu, nós podemos fazer isso.
E de repente, eu não estou pensando em Gale, mas em Peeta e... Peeta! Ele salvou a minha vida!, penso. Porque na hora que nos encontramos, eu não conseguia afirmar o que era real e o que o veneno das teleguiadas tinha me feito imaginar. Mas se ele tinha me salvado, e meus instintos diziam que ele tinha, por que motivo? Ele simplesmente está trabalhando no ângulo de Lover Boy que tinha iniciado na entrevista? Ou ele realmente estava tentando me proteger? E se ele estivesse, o que estava fazendo com aqueles Carreiristas, pra começo de conversa? Nada disso fazia sentido.
Eu me pergunto por um momento o que Gale achou do incidente e então empurro esse negócio todo para fora da minha mente, porque, por alguma razão, Gale e Peeta não coexistem bem juntos nos meus pensamentos.
Então eu me foco na coisa realmente boa que aconteceu desde que pisei na arena. Eu tenho um arco e flechas! Uma inteira dúzia de flechas se você contar aquela que eu recuperei na árvore. Elas não possuem semelhança alguma com o limo verde nocivo que saiu do corpo da Glimmer – o que me leva a crer que isso pode não ter sido inteiramente real – mas elas têm uma boa quantidade de sangue seco nelas. Eu posso limpá-las mais tarde, mas tiro um minuto para atirar algumas numa árvore próxima. Elas são mais parecidas com as armas do Centro de Treinamento do que com as minhas lá em casa, mas quem liga? Eu posso trabalhar com elas.
As armas me davam uma perspectiva totalmente nova nos Jogos. Sei que tenho adversários fortes para enfrentar. Mas eu não sou mais uma mera presa que corre e se esconde e toma medidas desesperadas. Se Cato saísse pelas árvores agora, eu não fugiria, eu atiraria. Descubro que estou na verdade antecipando o momento com prazer.
Mas primeiro, tenho que colocar um pouco de força de volta no meu corpo. Estou muito desidratada novamente e meu suprimento de água está terrivelmente baixo. A pequena camada de gordura que consegui adquirir ao me empanturrar durante o tempo de preparação na Capital se foi, além de diversos quilos a mais, também.
Meus quadris e costelas estão mais proeminentes do que eu me lembro desde aqueles terríveis meses após a morte do meu pai. E então há os meus ferimentos a se conter – queimaduras, cortes e contusões de bater nas paredes, e três picadas de teleguiadas, que estão tão doloridas e inchadas como nunca.
Trato as minhas queimaduras com pomada e tento untar um pouco nas picadas também, mas não faz efeito algum nelas.
Minha mãe conhecia um tratamento para elas, algum tipo de folha que podia retirar o veneno, mas ela raramente tinha motivo para usá-la, e eu nem me lembro nome, quanto mais sua aparência.
Primeiro água, penso. Você pode caçar pelo caminho agora. É fácil ver a direção de onde vim pelo caminho de destruição que meu corpo desvairado fez pela folhagem. Então eu ando em outra direção, esperando que meus inimigos ainda estejam presos no mundo surreal do veneno das teleguiadas.
Não posso me mover muito rapidamente, minhas juntas rejeitam quaisquer movimentos abruptos. Mas estabeleço minha passada lenta de caçadora que uso quando persigo uma caça.
Dentro de poucos minutos, avisto um coelho e faço a minha primeira matança com o arco e a flecha. Não é o meu tiro limpo normal no olho, mas eu o tomo. Após cerca de uma hora, acho um riacho, raso, mas largo, e mais do que o suficiente para as minhas necessidades.
O sol está quente e severo, então enquanto eu espero minha água purificar, eu me dispo até ficar de roupa de baixo e arrasto-me na corrente branda. Estou imunda da cabeça aos pés, tento me limpar, mas eventualmente só fico parada na água por alguns minutos, deixando ela limpar a fuligem e o sangue e a pele que começou a descascar das minhas queimaduras.
Após lavar as minhas roupas e pendurá-las nos arbustos para secar, sento no banco ao sol por um pouquinho, desembaraçando meu cabelo com os dedos. Meu apetite retorna e eu como um biscoito e uma tira de bife. Com um punhado de musgo, poli o sangue das minhas armas de prata.
Refrescada, trato das minhas queimaduras de novo, tranço meu cabelo novamente e me visto nas minhas roupas úmidas, sabendo que o sol iria secá-las logo.
Seguir o riacho contra sua corrente parece o mais inteligente a se fazer. Estou viajando colina acima agora, o que eu prefiro, com uma fonte de água fresca não só para mim, mas possivelmente para caça. Eu facilmente acerto um pássaro estranho que deve ser alguma forma de peru selvagem.
No fim da tarde, decido construir uma pequena fogueira para cozinhar a carne, apostando que o pôr-do-sol ajudaria a esconder a fumaça e eu posso apagar o fogo ao cair da noite.
Limpo a caça, tomando cuidado extra com o pássaro, mas não há nada de alarmante nele. Uma vez que as penas são depenadas, ele não é maior que uma galinha, mas é rechonchudo e firme. Eu acabo de colocar a primeira porção sobre os carvões quando ouço o galho se quebrar.
Em um movimento, me viro para o som, trazendo o arco e flecha no meu ombro. Não há ninguém ali. Ninguém que eu consiga ver, de qualquer jeito. Então avisto a ponta da bota de uma criança simplesmente espiando detrás de um tronco de uma árvore.
Meus ombros relaxam e eu sorrio. Ela consegue se mover pela floresta como uma sombra, você tem que dar-lhe esse crédito. Como mais ela poderia ter me seguido? As palavras saem da minha boca antes que eu possa pará-las.
— Sabe, eles não são os únicos que podem formar alianças  digo.
Por um instante, não há resposta. Então um dos olhos da Rue espia por trás do tronco.
— Você me quer como aliada?
— Por que não? Você me salvou com aquelas teleguiadas. É esperta o bastante para ainda estar viva. E eu não pareço conseguir me livrar de você.
Ela pesteneja para mim, tentando decidir.
— Está com fome?
Eu consigo vê-la engolir em seco, seu olho vacilando para a carne.
— Vamos, então, eu tive duas matanças hoje.
Rue sai hesitantemente no aberto.
— Posso curar suas picadas.
— Pode?  pergunto. — Como?
Ela procura na mochila que carrega e puxa um punhado de folhas. Tenho quase certeza de que são essas as que a minha mãe usa.
— Onde encontrou elas?
— Por aí. Nós todos carregamos quando trabalhamos nos pomares. Elas deixaram um monte de ninhos lá  diz Rue. — Tem um monte aqui também.
— É mesmo. Você é do Distrito Onze. Agricultura  eu digo. — Pomares, hein? Deve ser assim que você consegue voar pelas árvores como se tivesse asas.
Rue sorri. Eu parei em uma das poucas coisas que ela admitirá ter orgulho.
— Bem, vamos lá, então. Me conserta.
Eu caio pesadamente ao lado da fogueira e subo a perna da minha calça para revelar a picada no meu joelho. Para minha surpresa, Rue coloca o punhado de folhas em sua mão e começa a mastigá-las. Minha mãe usaria outros métodos, mas não é como se tivéssemos muita opção. Após um minuto, mais ou menos, Rue pressiona um bloco verde nojento de folhas mastigadas e cuspe no meu joelho.
— Ahhh.
O som sai da minha boca antes que eu possa pará-lo. É como se as folhas estivessem realmente sugando a dor da picada.
Rue dá uma risadinha.
— Sorte você ter tido o bom senso de puxar os ferrões, ou seria muito pior.
— Põe no meu pescoço! Na minha bochecha!  eu quase imploro.
Rue enche sua boca com outro punhado de folhas, e logo eu estou rindo, porque o alívio é tão doce. Eu noto uma queimadura grande no antebraço da Rue.
— Eu tenho algo para isso.
Deixo minhas armas de lado e unto seu braço com o remédio para queimadura.
— Você tem bons patrocinadores  ela diz saudosamente.
— Você não recebeu nada ainda?  pergunto. Ela balança sua cabeça. — Você irá, contudo. Veja. Quanto mais perto chegarmos do fim, mais as pessoas perceberão como você é esperta.
Eu viro a carne.
— Você não estava brincando sobre me querer como aliada?  ela pergunta.
— Não, eu estou falando sério.
Eu quase consigo ouvir Haymitch urrando enquanto eu me junto à criança franzina. Mas eu quero ela. Porque ela é uma sobrevivente, e eu confio nela, e por que não admitir? Ela me lembra Prim.
— Está bem  ela diz, e estica sua mão. Nós apertamos. — É um acordo.
É claro, esse tipo de acordo só pode ser temporário, mas nenhuma de nós menciona isso.
Rue contribui para a refeição com um grande punhado de algum tipo de raiz dura. Assada sobre o fogo, elas tem o doce e picante gosto de pastinaca. Ela reconhece a ave, também, alguma coisa selvagem que chamam de groosling em seu distrito. Ela diz que às vezes um bando vaga pelo pomar e eles têm um almoço decente nesse dia. Por um tempo, toda a conversa para enquanto enchemos nossos estômagos. O groosling tem uma carne deliciosa que é tão gorda, a gordura pinga no seu rosto quando você a morde.
— Ah  Rue  suspira. — Eu nunca comi uma perna inteira sozinha.
Aposto que não. Aposto que ela raramente tem carne.
— Pegue a outra.
— Sério?  ela pergunta.
— Pegue o que quiser. Agora que eu tenho um arco e flecha, posso conseguir mais. Além disso, eu tenho armadilhas. Posso te mostrar como montá-las.
Rue ainda olha incerta para a perna.
— Ah, pega  eu digo, colocando a perna da galinha em sua boca. — Só ficará boa por alguns dias, de qualquer jeito, e nós temos o pássaro todo, além do coelho.
Uma vez que ela tomou posse dela, seu apetite ganha e ela dá uma bocada enorme.
— Eu achava que, no Distrito Onze, você teria um pouco mais para comer do que nós. Sabe, já que vocês plantam comida.
Os olhos de Rue se alargam.
— Ah, não, não podemos comer as colheitas.
— Eles te prendem, ou algo assim?  pergunto.
— Eles te açoitam e fazem todo mundo assistir  Rue responde. — O prefeito é muito severo quanto a isso.
Eu posso afirmar pela expressão dela que não é uma ocorrência tão incomum. Um açoitamento público é algo raro no Distrito 12, apesar de um ocorrer ocasionalmente. Tecnicamente, Gale e eu podíamos ser açoitados diariamente por caçar ilegalmente na floresta – bem, tecnicamente, podíamos conseguir muito pior – exceto que todos os oficiais compram a nossa carne. Além do mais, nosso prefeito, o pai da Madge, não parece gostar muito de tais eventos. Talvez seja o distrito menos prestigioso, mais pobre e mais ridicularizado do país tenha suas vantagens. Tal como ser amplamente ignorada pelo Capital enquanto produzíssemos nossas quotas de carvão.
— Você tem todo o carvão que quer?  Rue pergunta.
— Não. Só o que compramos e o que fica preso nas nossas botas.
— Eles nos alimentam um pouquinho a mais durante a colheita, para que as pessoas possam continuar por mais tempo  diz Rue.
— Você não tem que estar na escola?  pergunto.
— Não durante a colheita. Todos trabalham nessa época.
É interessante escutar sobre a vida dela. Nós temos tão pouca comunicação com qualquer um fora do nosso distrito. De fato, eu me pergunto se os Gamemakers estão bloqueando a nossa conversa, porque mesmo que a informação parece ser inofensiva, eles não querem que pessoas em distritos diferentes saibam umas sobre as outras.
Como Rue sugeriu, nós distribuímos toda a nossa comida para planejar adiantadamente. Ela viu a maior parte da minha, mas eu acrescento as últimas bolachas e tiras de bife à pilha. Ela coletou uma bela coleção de raízes, nozes, verduras frescas e até mesmo algumas amoras.
Eu rolo uma baga estranha nos meus dedos.
— Você tem certeza de que isso é seguro?
— Ah, sim, nós a temos lá em casa. Eu estou comendo elas há dias  ela diz, enfiando um punhado em sua boca.
Eu mordo uma hesitantemente, e é tão boa quanto as nossas amoras silvestres. Ter Rue como aliada parece uma escolha melhor o tempo todo. Nós dividimos nosso suprimento de comida, para que, caso fôssemos separadas, ambas ficaríamos bem por alguns dias.
Fora a comida, Rue tem um pequeno odre de água, um estilingue caseiro e um par extra de meias. Ela também tem um caco afiado de pedra que usa como faca.
— Eu sei que não é muito  ela diz, como se estivesse envergonhada — mas eu tinha que sair da Cornucópia rápido.
— Você fez bem.
Quando eu espalho meus utensílios, ela arfa um pouco quando vê os óculos de sol.
— Como você conseguiu ele?  ela pergunta.
— Na minha mochila. Ele foi inútil até agora. Não bloqueia o sol e dificulta enxergar eu digo com um dar de ombros.
— Ele não é para o sol, é para a escuridão  exclama Rue. — Às vezes, quando colhemos à noite, eles passam alguns pares para aqueles que ficam mais ao alto das árvores. Onde a luz das tochas não alcança. Uma vez, esse garoto Martin, tentou ficar com o seu. Escondeu em sua calça. Eles o mataram na hora.
— Eles mataram um garoto por ficar com isso?
— Sim, e todos sabiam que ele não era perigoso. Martin não era bem da cabeça. Quer dizer, ele ainda agia como alguém de três anos. Ele só queria os óculos para brincar diz Rue.
Ouvir isso me faz sentir que o Distrito 12 é algum tipo de refúgio seguro. É claro, as pessoas desmaiam por causa de fome o tempo todo, mas eu não consigo imaginar os Pacificadores assassinando uma criança boba. Tem uma garotinha, uma das netas da Greasy Sae, que vaga pelo Prego. Ela não é bem certa das ideias, mas é tratada como um tipo de animal de estimação. As pessoas lhe jogam restos e coisas.
— Então o que ele faz?  pergunto a Rue, pegando o óculos.
— Ele te deixa ver na completa escuridão. Experimente-os hoje à noite quando o sol se por.
Eu dou alguns fósforos à Rue e ela se certifica de que eu tenho folhas o bastante no caso de as minhas picadas doerem novamente. Nós extinguimos nossa fogueira e nos dirigimos corrente acima até quase o anoitecer.
— Onde você dorme?  pergunto a ela. — Nas árvores?  Ela assente. — Só com a sua jaqueta?
Rue ergue seu par extra de meias.
— Eu tenho essas para as minhas mãos.
Eu penso em como as noites têm sido frias.
— Você pode compartilhar o meu saco de dormir se quiser. Nós duas cabemos facilmente.
Seu rosto ilumina-se. Eu posso afirmar que isso é mais do que ela ousava esperar.
Nós escolhemos uma forquilha alta em uma árvore e nos acomodamos pela noite, bem quando o hino começa a tocar. Não houve mortes hoje.
— Rue, eu só acordei hoje. Quantas noites eu perdi?
O hino deveria bloquear nossas palavras, mas ainda assim eu sussurro. Eu até mesmo tomo a precaução de cobrir meus lábios com a minha mão. Não quero que a audiência saiba o que eu estou planejando contar a ela sobre Peeta. Entendendo a minha dica, ela faz o mesmo.
— Duas  ela responde. — As garotas dos Distritos Um e Quatro estão mortas. Há dez de nós restantes.
— Algo estranho aconteceu. Pelo menos, eu acho que sim. Pode ter sido o veneno das teleguiadas me fazendo imaginar coisas. Você conhece o garoto do meu distrito? Peeta? Eu acho que ele salvou a minha vida. Mas ele estava com os Carreiristas.
— Ele não está com eles agora  ela conta. — Eu os espiei em seu acampamento base no lago. Eles voltaram antes que tivessem um colapso por causa das picadas. Mas ele não está lá. Talvez ele tenha mesmo te salvado e teve que fugir.
Eu não respondo. Se, de fato, Peeta me salvou, eu estou devendo a ele novamente. E isso não pode ser pago de volta.
— Se ele salvou, foi tudo provavelmente só parte de sua atuação. Sabe, para fazer as pessoas pensarem que ele está apaixonado por mim.
— Ah  Rue fala pensativamente. — Eu não achei que fosse uma atuação.
— Claro que é — respondo— Ele arquitetou isso com o nosso mentor.
O hino acabou e o céu fica preto.
— Vamos experimentar esses óculos.
Peguei os óculos e os coloquei. Rue não estava brincando. Eu consigo ver tudo, desde as folhas nas árvores até o gambá passeando pelos arbustos há uns bons quinze metros de distância. Eu poderia matá-lo daqui se quisesse. Eu poderia matar qualquer um.
— Eu me pergunto quem mais tem um desses.
— Os Carreiristas têm dois. Mas eles têm de tudo no lago. E eles são tão fortes.
— Somos fortes, também  digo. — Só que de uma maneira diferente.
— Você é. Você consegue atirar  ela diz. — O que eu posso fazer?
— Você pode se alimentar. Eles podem?  pergunto.
— Eles não precisam. Eles têm todos aqueles suprimentos.
— Digamos que eles não tivessem. Digamos que os suprimentos se foram. Quanto tempo eles durariam? Quer dizer, é o Jogos Vorazes, certo?
— Mas, Katniss, eles não estão com fome  Rue rebate.
— Não, não estão. Esse é o problema  concordo.
E pela primeira vez, eu tenho um plano. Um plano que não é motivado pela necessidade de fugir e evadir. Um plano ofensivo.
— Acho que vamos ter que consertar isso, Rue.
Rue decidiu confiar em mim totalmente. Sei disso porque logo que o hino acaba ela se abraça contra mim e dorme. Nem eu tenho nenhum temor dela, como não tomo nenhuma precaução particular. Se ela me quisesse morta, tudo o que ela precisaria fazer era desaparecer daquela árvore sem mostrar o ninho de teleguiadas.
O que me irrita, bem no fundo da minha mente, é o óbvio. Ambas não podemos ganhar esses Jogos. Mas visto que as chances ainda estão contra nossa sobrevivência, consigo ignorar esse pensamento.
Além disso, estou distraída pela minha última ideia sobre os Carreiristas e seus suprimentos. De algum modo, Rue e eu temos que encontrar uma forma de destruir a comida deles. Tenho certeza que se alimentar será um tremendo esforço para eles. Tradicionalmente, a estratégia dos Carreiristas é pegar toda a comida cedo e trabalhar a partir daí. Os anos em que eles não a protegeram bem – um ano um grupo de répteis repugnantes a destruíram, noutro uma inundação provocada pelos Gamemakers a levou – foram geralmente os anos em que tributos de outros distritos tinham vencido. O fato de os Carreiristas terem crescido em um mar de rosas é, na verdade, sua desvantagem, porque eles não sabem como é ficar com fome. Não da forma que Rue e eu sabemos.
Mas estou muito exausta para começar qualquer plano detalhado essa noite. Minhas feridas sarando, minha mente ainda um pouco enevoada pelo veneno e o calor de Rue ao meu lado, sua cabeça encostada no meu ombro, me dá uma sensação de segurança.
Percebo, pela primeira vez, o quão sozinha eu estava na arena. O quão confortante a presença de outro ser humano pode ser. Cedo à minha sonolência, resolvendo que amanhã vou virar a mesa. Amanhã, serão os Carreiristas que terão que se cuidar.
A explosão do tiro dos canhões me acorda. O céu está marcado com luzes, os pássaros já trepidando. Rue se empoleira em um galho perto de mim, suas mãos segurando alguma coisa. Nós esperamos, escutando por mais tiros, mas não há mais nenhum.
— Quem você pensa que era?  não posso evitar pensar em Peeta.
— Não sei. Poderia ser qualquer um dos outros  diz Rue. — Acho que saberemos essa noite.
— Quem ainda resta novamente?  pergunto.
— O garoto do Distrito Um. Ambos os tributo do Dois. O garoto do Três. Thresh e eu. E você e Peeta  Rue conta. — São oito. Espere, e o garoto do Dez, aquele com a perna ruim. Ele faz nove.
Há alguém mais, mas nenhuma de nós consegue se lembra de quem é.
— Queria saber como esse último morreu  diz Rue.
— Nem me fale. Mas é bom para nós. Uma morte deve segurar a multidão um pouco. Talvez tenhamos tempo para fazer algo antes que os Gamemakers decidam que as coisas estão muito devagar. O que há em suas mãos?
— Café da manhã  diz Rue.
Ela revela dois grandes ovos.
— Eles são de que tipo? — pergunto.
— Não tenho certeza. Há uma área pantanosa por aqui. Algum tipo de pássaro aquático ela diz.
Seria legal cozinhá-los, mas nenhuma de nós quer correr o risco com o fogo. Acho que o tributo que morreu hoje foi uma vítima dos Carreiristas, o que significa que eles se recuperaram o bastante para estar de volta aos Jogos. Nós duas sugamos de dentro do ovo, comendo perna de coelho e algumas amoras. É um bom café da manhã em qualquer lugar.
— Pronta para agir?  digo, puxando minha mochila.
— Agir como? — Rue pergunta, mas pela forma como ela salta, pode-se dizer que está dentro de qualquer coisa que eu proponha.
— Hoje nós levamos a comida dos Carreiristas.
— Sério? Como?
Pode-se ver o brilho de excitação nos seus olhos. Dessa forma, ela é exatamente o oposto de Prim, para quem aventuras são experiências difíceis.
— Não tenho ideia. Vamos, temos que bolar um plano enquanto caçamos.
Nós não conseguimos caçar muito porque estou muito ocupada pegando cada pedaço de informação que posso tirar de Rue sobre a base dos Carreiristas. Ela só esteve os espiando brevemente, mas ela é observadora.
Eles montaram seu campo ao lado do lago. Seus suprimentos estão juntos uns trinta metros afastados. Durante o dia, eles deixavam outro tributo, o garoto do Distrito 3, para vigiar os suprimentos.
— O garoto do Distrito Três?  pergunto. — Ele está trabalhando com eles?
— Sim, ele fica no acampamento o tempo todo. Ele foi picado, também, quando levaram os teleguiadas para o lago. Acho que eles concordaram em deixá-lo viver se ele atuasse como guarda. Mas ele não é muito grande.
— Que armas ele tem?  pergunto.
— Nada demais que eu pude ver. Uma lança. Ele talvez seja capaz de nos afastar com isso, mas Thresh poderia matá-lo facilmente  diz Rue.
— E a comida apenas está a céu aberto?
Ela acena.
— Algo não está certo em tudo isso.
— Eu sei. Mas não posso dizer o que é exatamente  Rue fala. — Katniss, mesmo se nós conseguirmos chegar à comida, como iríamos livrar-nos dela?
— Queimando. Derrubando no lago. Ensopando-a com combustível.  Cutuco Rue na barriga, como eu faria com Prim. — Comê-la!
Ela ri.
— Não se preocupe, pensarei em algo. Destruir coisas é muito mais fácil que construí-las.
Por enquanto, nós escavamos raízes, juntamos amoras e verduras, planejamos uma estratégia em voz baixa. E eu vim a conhecer Rue, a mais velha de seis crianças, protetora feroz de seus irmãos, que dá suas rações para os mais novos, que explora os campos num distrito onde os Pacificadores são bem menos gentis que os nossos. Rue, que quando você a pergunta o que ela mais ama no mundo, responde, de todas as coisas:
— Música.
— Música? — repito.
No nosso mundo, classifico música em algum lugar entre fitas de cabelo e arco-íris em termos de inutilidade. Ao menos um arco-íris te dá uma indicação do tempo.
— Você tem muito tempo para isso?
— Nós cantamos em casa. No trabalho, também. É por isso que eu adoro seu broche ela diz, apontando para o mockingjay do qual eu já tinha me esquecido.
— Vocês tem mockingjays?  pergunto.
— Ah, sim. Tenho alguns que são meus amigos especiais. Nós podemos cantar para trás e para frente por horas. Eles carregam mensagens para mim.
— O que você quer dizer?
— Geralmente sou a maior, então sou a primeira a ver as penas que sinalizam o fim do tempo. Há uma pequena música em especial que faço  Rue explica. Ela abre a boca e canta uma pequena execução de quatro notas numa voz clara e suave. — E os mockingjays a espalham por todo o pomar. É como todos sabem que é a hora de parar ela continua. — Eles podem ser perigosos entretanto, se você chegar muito perto de seus ninhos. Mas você não pode culpá-los por isso.
Eu libero o broche e o dou para ela.
— Aqui, pegue-o. Significa mais para você do que para mim.
— Ah, não — Rue fala, fechando seus dedos para trás sobre o broche. — Eu gosto de vê-lo em você. Foi como decidi que podia confiar em você. Além disso, eu tenho isso.
Ela puxa um colar feito de algum tipo de erva de sua camisa. Nele está pendurado uma estrela de madeira rudemente esculpida.
— É um amuleto de boa sorte.
— Bem, funcionou até agora  digo, prendendo o mockingjay de volta na minha camisa. — Talvez você deva ficar com isso.
No almoço, temos um plano. No início da tarde, estamos prontas para executá-lo.
Ajudo Rue a coletar e arrumar a madeira para as duas primeiras fogueiras, para a terceira ela terá tempo sozinha. Decidimos nos encontrar depois do terreno onde comemos nosso primeiro alimento juntas. O rio deve ajudar a me guiar de volta pra lá. Antes de partir, tenho a certeza que Rue está bem estocada com comida e fósforos. Até insisto que ela tome meu saco de dormir, no caso de não ser possível nos encontrar no cair da noite.
— E você? Não terá frio?  ela pergunta.
— Não se eu pegar outro saco no lago. Sabe, roubar não é ilegal aqui — digo com um sorriso.
No último minuto, Rue decide me ensinar seu sinal mockingjay, o que ela dá para indicar que o dia de trabalho acabou.
— Talvez não funcione. Mas se você ouvir mockingjays cantando, saiba que estou bem, apenas não consegui voltar a tempo.
— Há muitos mockingjays aqui?  Pergunto.
— Você não os viu? Eles têm ninhos em todos os lugares.
Tenho que admitir que não notei.
— Ok, então. Se tudo for de acordo com o plano, verei você no jantar  digo.
Inesperadamente, Rue atira seus braços ao meu redor. Hesito apenas por um momento antes de abraçá-la de volta.
— Seja cuidadosa — ela fala para mim.
— Você também.
Viro-me e volto para o rio, sentindo-me um pouco preocupada. Com Rue ser assassinada, com Rue não ser assassinada e nós duas sendo deixadas por último, com deixar Rue sozinha, com deixar Prim sozinha em casa. Não, Prim tem minha mãe, Gale e um padeiro que prometeu que ela não terá fome. Rue tem apenas a mim.
Quando alcanço o lago, tenho só que seguir a descida para o lugar onde eu inicialmente fiquei depois do ataque das teleguiadas. Tenho que ser cautelosa enquanto me movo ao longo da água, porque encontro meus pensamentos preocupados com perguntas sem respostas, a maioria envolvendo Peeta. O canhão que atirou cedo essa manhã, aquilo significava sua morte? Sendo assim, como ele morreu? Nas mãos de um Carreirista? Foi uma vingança por ter me deixado viva? Eu me esforço de novo para lembrar aquele momento sobre o corpo de Glimmer, quando ele apareceu entre as árvores. Mas só o fato de que ele estava brilhando leva-me a duvidar de tudo que aconteceu.
Devo ter me movido muito devagar ontem, porque alcanço o trecho raso onde tomei meu banho há poucas horas. Paro para tornar a encher minha água e adicionar uma camada de lama a minha mochila. Ela parece ter uma tendência a voltar ao laranja não importa quantas vezes eu a cubra.
Minha proximidade do acampamento dos Carreiristas afia meus sentidos, e quanto mais perto fico deles, mais ponderada sou, parando frequentemente para tentar escutar sons anormais, uma flecha já encaixada no meu arco. Não vejo nenhum tributo, mas noto algumas das coisas que Rue mencionou. Pedaços de amoras doces. Um arbusto com as folhas que curaram minhas picadas. Grupos dos ninhos de teleguiadas nas vizinhanças da árvore em que eu estava presa. E aqui e acolá, um brilho preto-e-branco da asa de um mockingjay nos galhos sobre a minha cabeça.
Quando alcanço a árvore com o ninho abandonado, paro por um momento para reunir coragem. Rue deu instruções específicas sobre como chegar ao melhor lugar para espiar perto do lago desse ponto.
Lembre-se, digo para mim mesma. Você é a caçadora agora, não eles.
Seguro meu arco firme e continuo. Vou para o bosque que Rue me disse e de novo tenho que admirar sua esperteza. É bem no limite da floresta, mas a folhagem é tão espessa que posso facilmente observar o acampamento dos Carreiristas sem ser localizada. Entre nós está a extensão plana onde os Jogos começaram.
Há quatro tributos. O garoto do Distrito 1, Cato, a garota do Distrito 2 e um garoto magro e pálido que deve ser do Distrito 3. Ele fez quase nenhuma impressão em mim durante nosso tempo na Capital. Posso me lembrar quase nada sobre ele, nem suas vestes, nem sua pontuação no treinamento, nem sua entrevista. Mesmo agora, enquanto ele está sentado lá ocupando-se com algum tipo de caixa de plástico, ele é facilmente ignorado na presença de seus grandes e dominantes companheiros. Mas ele deve ser de algum valor, ou não teriam se incomodado em deixá-lo vivo. Ainda assim, vê-lo apenas me dá uma sensação de intranquilidade quando ao motivo dos Carreiristas possivelmente deixarem-no como um guarda, por que eles permitiram que ele vivesse.
Todos os quatro tributos parecem ainda estar se recuperando do ataque das teleguiadas. Mesmo daqui, posso ver os grandes pedaços inchados em seus corpos. Eles não devem ter tido a consciência de remover os ferrões, ou se tiveram, não sabem sobre as folhas que as curam. Aparentemente, quaisquer que sejam os remédios que encontraram em Cornucópia foram ineficazes.
A Cornucópia está na sua posição original, mas dentro deve ter sido limpo. A maioria dos suprimentos, seguros em caixotes, sacos e caixas de plástico, está empilhada ordenadamente em uma pirâmide, no que parece ser uma distância questionável do acampamento. Outros estão espalhados ao redor do perímetro da pirâmide, quase imitando o esboço de suprimentos ao redor da Cornucópia ao assalto dos Jogos. O teto de tecido que, além de desencorajar os pássaros, parece ser uma proteção inútil da pirâmide.
Toda a estrutura é completamente complicada. A distância, a rede e a presença do garoto do Distrito 3. Uma coisa é certa, destruir aqueles suprimentos não vai ser tão fácil quanto parece. Algum outro fator está em jogo aqui, e é melhor que eu compreenda logo o que é.
Meu palpite é que a pirâmide é uma armadilha de alguma maneira. Penso em buracos escondidos, redes que caem, um segmento que quando quebrado enviar um dardo venenoso no seu coração. Realmente, as possibilidades são infinitas.
Enquanto penso nas minhas opções, ouço Cato gritar. Ele está apontando para a floresta, muito além de mim, e sem me virar sei que Rue deve ter acendido a fogueira. Tivemos a certeza de juntar madeira verde para fazer a fumaça notável. Os Carreiristas começam a se armar imediatamente.
A discussão é interrompida. Está alto o bastante para eu escutar que a preocupação é se o garoto do Distrito 3 deveria ficar ou acompanhá-los.
— Ele vem. Precisamos dele na floresta, e seu trabalho aqui está feito, de qualquer forma, ninguém pode tocar aqueles suprimentos  diz Cato.
— E o Lover Boy?  diz o garoto do Distrito 1.
— Eu continuo te dizendo, esqueça-o. Sei onde o cortei. É um milagre que ele não sangrou até a morte ainda. De qualquer modo, ele não está em condições de nos atacar Cato responde.
Então Peeta está aí fora na floresta, gravemente ferido. Mas ainda estou no escuro sobre o que o motivou a trair os Carreiristas.
— Vamos  Cato ordena.
Ele empurra uma lança para as mãos do garoto do Distrito 3 e eles se deslocam na direção do fogo. A última coisa que ouço enquanto eles entram na floresta é Cato dizendo:
— Quando nós a encontrarmos, eu a matarei ao meu estilo, sem ninguém interferir.
De algum modo não acho que ele esteja falando de Rue. Ela não derrubou um ninho de teleguiadas nele.
Fico parada por meia hora ou mais, tentando calcular o que fazer com os suprimentos. A única vantagem que tenho com o arco e flecha é a distância. Eu podia mandar uma flecha em chamas na pirâmide facilmente o bastante – sou boa o suficiente na mira para acertar aquelas aberturas na rede – mas não há garantia de que pegue. Mas provável que se queime e aí? Não conseguiria nada e daria a eles muita informação minha. Que eu estava aqui, que tenho um cúmplice, que posso usar o arco e flecha com precisão.
Não há alternativa. Vou ter que me aproximar e ver se não posso descobrir o que exatamente protege os suprimentos. Na realidade, estou quase me revelando quando um movimento é capturado pelo meu olho. Algumas centenas de metros a minha direita, vejo alguém emergir da floresta. Por um segundo, acho que é Rue, mas então reconheço Foxface – ela é a única que nós não podíamos nos lembrar essa manhã – rastejando para o espaço aberto. Quando decide que é seguro, ela corre para a pirâmide, com passos rápidos e pequenos. Justo antes de alcançar o círculo de suprimentos que foram espalhados ao redor da pirâmide, ela para, examina o chão e cuidadosamente coloca seu pé em um ponto. Então começa a se aproximar da pirâmide com pulinhos estranhos, às vezes parando sobre um pé, oscilando levemente, às vezes arriscando poucos passos.
Num certo ponto, ela se lança no ar, sobre um pequeno barril e pousa equilibrada nas pontas dos pés. Mas ela erra o alvo um pouco, e seu ímpeto a joga para frente. Ouço-a dar um berro agudo quando suas mãos batem no chão, mas nada acontece. Em um momento, ela fica de pé e continua até alcançar a maior parte dos suprimentos.
Então, estou certa quanto à armadilha explosiva, mas claramente é mais complexa do que imaginei. Estava certa quanto à garota, também. Quão astuta ela é para ter descoberto esse caminho até a comida e ser capaz de replicá-lo tão bem? Ela enche sua bolsa, tomando alguns itens de uma variedade de recipientes, biscoitos de um caixote, um punhado de maçãs de um saco que está suspenso numa corda do lado de fora da caixa. Mas só um punhado de cada, não o bastante para indicar que tem comida faltando. Não o bastante para causar suspeita. E depois ela está fazendo sua dancinha estranha de volta para fora do círculo e corre para dentro da floresta novamente, sã e salva.
Percebo que estou cerrando os dentes de frustração. Foxface confirmou o que eu estava pensando. Mas que tipo de armadilha eles armaram que requer tanta destreza? Tem tantos pontos de gatilho? Porque ela gritou assim que suas mãos fizeram contato com a terra? Você pensaria... e rapidamente começa a surgir em mim... você pensaria que todo o chão iria explodir.
— É minado  murmuro.
Isso explica tudo. A disposição dos Carreiristas de deixar seus suprimentos, a reação de Foxface, o envolvimento com o garoto do Distrito 3, onde eles têm fábricas, onde eles têm televisões, automóveis e explosivos. Mas onde ele as conseguiu? Nos suprimentos? Esse não é o tipo de arma que os Gamemakers geralmente dão, visto que eles gostam de ver tirarem sangue pessoalmente.
Saio dos arbustos e atravesso uma das placas metálicas que elevaram os tributos para a arena. O chão ao redor dela foi escavado e colocado de volta.
O campo minado foi desativado depois dos sessenta segundos ficando sobre as placas, mas o garoto do Distrito 3 deve ter dado um jeito de ativá-las. Nunca vi ninguém nos Jogos fazer isso. Aposto que isso chocou até os Gamemakers.
Bem, viva para o garoto do Distrito 3 por ativar mais de um deles, mas o que eu deveria fazer agora? Obviamente, não posso ir passear nessa bagunça sem explodir. E quanto a mandar uma flecha em chamas, isso é mais ridículo agora. As minas começam a funcionar com a pressão. Não tem que ser muito, tampouco. Um ano, uma garota derrubou sua lembrança, uma pequena bola de madeira, enquanto estava em sua placa, e eles literalmente tiveram de limpar os seus pedaços do chão.
Meu braço é muito bom, talvez seja capaz de atirar algumas lá e explodir o quê? Talvez uma mina? Isso começaria uma reação em cadeia. Ou não? O garoto do Distrito 3 teria colocado as minas de modo que uma única mina não perturbaria as outras? Protegendo assim os suprimentos, e se assegurando da morte do invasor. Mesmo se eu explodir de uma mina, trarei os Carreiristas de volta com certeza. E de qualquer forma, o que estou pensando? Há aquela rede, amarrada claramente para desviar de tal ataque. Além disso, o que eu realmente precisaria é atirar trinta pedras de uma vez só, desencadeando uma reação em cadeia, demolindo tudo.
Olho de volta para a floresta. A fumaça do segundo fogo de Rue está se elevando em direção ao céu. A essa hora, os Carreiristas provavelmente já começaram a suspeitar de algum tipo de truque. O tempo está correndo.
Há uma solução para isso, sei que há, se eu puder me focar. Fito a pirâmide, as caixas, os caixotes, pesadas demais para desmoronar com uma flecha. Talvez uma contenha óleo de cozinha, e a ideia da flecha em chamas está revivendo quando noto que posso acabar perdendo todas as vinte flechas e não conseguir acertar na caixa de óleo, como eu tinha adivinhado. Estou verdadeiramente pensando em tentar recriar o caminho da Foxface para a pirâmide na esperança de encontrar um novo meio para destruição quando meus olhos caem no saco de maçãs. Eu poderia cortar a corda com um tiro, como fiz tanto no Centro de Treinamento? É um saco grande, mas ainda assim talvez pode ser boa o bastante para apenas uma explosão. Se eu apenas pudesse soltar todas as maçãs...
Sei o que fazer. Passo para a pastagem e pego três flechas para fazer o trabalho. Coloco meus pés com cuidado, bloqueando o resto do mundo enquanto miro meticulosamente. A primeira flecha rasga do lado da bolsa perto do topo, deixando uma fenda no saco. A segunda amplia o buraco. Posso ver a primeira maçã balançando quando lanço a terceira seta, pegando o retalho rasgado e cortando-o do saco.
Por um momento, o tempo parece congelar. E depois as maçãs caem no chão e sou jogada para trás.
O impacto com a terra da planície compactada sob pressão me tira o fôlego. Minha mochila pouco faz para suavizar o golpe. Felizmente, minha aljava de flechas ficou preso na curva do meu cotovelo, poupando tanto ele quanto o meu ombro, e o arco está preso no meu aperto. O chão ainda treme com as explosões. Eu não consigo ouvi-las. Não consigo ouvir nada no momento. Mas as maçãs devem ter ativado o suficiente de minas, fazendo com que escombros ativassem as outras.
Consigo proteger meu rosto com meus braços enquanto pedaços despedaçados de substâncias, algumas queimando, choviam ao meu redor. Uma fumaça ácida enche o ar, o que não é o melhor remédio para alguém que está tentando recuperar a habilidade de respirar.
Após cerca de um minuto, o chão para de vibrar. Eu rolo de lado e me permito um momento de satisfação ao ver a ruína fumegante que recentemente fora a pirâmide. Provavelmente os Carreiristas não conseguirão salvar nada disso.
É melhor eu cair fora daqui, penso. Eles virão diretamente para esse lugar. Mas, uma vez de pé, percebo que escapar talvez não seja tão simples. Estou tonta. Não do tipo ligeiramente instável, mas do tipo que faz as árvores precipitarem-se ao seu redor e faz com que a terra se mova em ondas sob seus pés.
Eu dou alguns passos e de algum modo acabo de quatro. Espero alguns minutos para fazer isso passar, mas não passa.
Pânico começa a se assentar. Eu não posso ficar aqui. Fugir é essencial.
Mas não posso tampouco andar ou escutar. Eu coloco uma mão no meu ouvido esquerdo, aquele que estava virado na direção da explosão, e ela sai manchada de sangue. Eu fiquei surda da explosão? A ideia me apavora. Eu confio tanto nos meus ouvidos quanto nos meus olhos como caçadora, talvez às vezes mais. Não posso deixar meu medo aparecer, contudo. Absolutamente, positivamente, eu estou ao vivo em cada tela em Panem.
Nada de rastros de sangue, eu digo a mim mesma, e consigo puxar o capuz sobre minha cabeça, amarrar a corda sob meu queixo com dedos não cooperantes. Isso deve ajudar a enxugar o sangue. Eu não consigo andar, mas consigo rastejar? Eu me movo para frente em tentativa. Sim, se eu for bem devagar, eu consigo rastejar. A maior parte da floresta oferecerá uma cobertura insuficiente.
Minha única esperança é voltar ao espaço de Rue e me esconder na folhagem. Eu não posso ser pega aqui de quatro no aberto. Não só eu vou enfrentar a morte, mas com certeza será uma longa e dolorosa pelas mãos de Cato. Pensar que Prim teria que assistir isso me mantém obstinadamente indo em direção, centímetro por centímetro, ao esconderijo.
Outra explosão me golpeia e me põe de cara no chão. Uma mina errante, disparada por um engradado desmoronando. Isso acontece mais duas vezes. Eu sou lembrada daquelas últimas sementes que estouram quando Prim e eu estouramos pipoca no fogo em casa.
Dizer que eu escapei no último segundo é uma atenuação. Eu literalmente acabei de me arrastar para o amontoado na base das árvores quando Cato aparece, movimentando-se em alta velocidade no aberto, logo seguido por seus companheiros. Sua raiva é tão extrema que podia ser cômica – então as pessoas realmente arrancam seus cabelos e batem no chão com seus punhos – se eu não soubesse que estava direcionada a mim, ao que eu tinha feito a ele. Acrescente a isso a minha proximidade, minha inabilidade de correr ou me defender, e de fato, o negócio todo tinha me apavorado.
Estou feliz por meu esconderijo tornar impossível que as câmeras deem uma olhada de perto em mim, porque estou roendo minhas unhas como se não houvesse amanhã. Mordiscando os últimos pedaços de esmalte, tentando impedir meus dentes de trepidarem.
O garoto do Distrito 3 joga pedras nas ruínas e deve ter declarado que todas as minas foram desativadas, porque os Carreiristas estão se aproximando dos destroços.
Cato terminou a primeira fase de seu ataque de raiva e desconta sua raiva nos restantes fumegantes ao chutar vários recipientes abertos. Os outros tributos estão cutucando a baderna, procurando algo para salvar, mas não há nada. O garoto do Distrito 3 fez seu trabalho bem demais. Essa ideia deve ocorrer ao Cato também, porque ele se vira para o garoto e parece estar gritando com ele. O garoto do Distrito 3 só tem tempo de se virar e correr antes que Cato o prenda com uma chave de braço de costas. Eu consigo ver a ondulação dos músculos nos braços de Cato enquanto ele dá um solavanco severo na cabeça do garoto para o lado.
Foi rápida assim. A morte do garoto do Distrito 3.
Os outros dois Carreiristas pareciam estar tentando acalmar Cato. Eu consigo afirmar que ele quer voltar para a floresta, mas eles ficam apontando para o céu, o que me confunde até que eu percebo, é claro. Eles acham que quem quer que tenha acionado as explosões está morto.
Eles não sabem sobre as flechas e as maçãs. Eles presumem que a armadilha explosiva foi a culpada, mas que o tributo que explodiu os suprimentos foi morto fazendo isso. Se tivesse havido um tiro de canhão, ele poderia ter sido perdido facilmente nas explosões subsequentes. Os restos despedaçados do ladrão removidos pelo aerobarco.
Eles se retiram para o lado mais distante do lago para permitir que os Gamemakers recuperem o corpo do garoto do Distrito 3. E eles esperam. Acho que um canhão é disparado. Um aerobarco aparece e leva o garoto morto.
O sol mergulha abaixo do horizonte. A noite cai. No céu, vejo o brasão e sei que o hino deve ter começado. Um momento de escuridão. Eles mostram o garoto do Distrito 3. Eles mostram o garoto do Distrito 10, que deve ter morrido essa manhã. Então o selo reaparece. Então, agora eles sabem.
O bombardeador sobreviveu. Na luz do selo, eu consigo ver Cato e a garota do Distrito 2 colocarem seus óculos de visão noturna. O garoto do Distrito 1 acende um galho de árvore para fazer uma tocha, iluminando a determinação amarga no rosto de todos. Os Carreiristas caminham de volta à floresta para caçar.
A tontura diminuiu e embora meu ouvido esquerdo ainda esteja ensurdecido, eu consigo ouvir um zumbido no meu direito, o que parece ser um bom sinal. Não há razão para deixar o meu esconderijo, contudo. Eu estou tão segura quanto posso estar, aqui na cena do crime. Eles provavelmente acham que o bombardeador tem uma vantagem de duas ou três horas sobre eles.
Ainda assim, passa um tempão antes de eu arriscar um movimento.
A primeira coisa que eu faço é procurar meus próprios óculos e colocá-los, o que me relaxa um pouco, ter pelo menos um dos meus sentidos de caçadora funcionando. Bebo um pouco de água e limpo o sangue da minha orelha, temendo que o cheiro de carne atraia predadores não desejados – sangue fresco já é ruim o bastante. Faço uma bela refeição de verduras frescas, raízes e amoras que Rue e eu coletamos hoje.
Onde está a minha pequena aliada? Ela conseguiu voltar para o local de encontro? Ela está preocupada comigo? Pelo menos o céu mostrou que estamos vivas.
Contei rapidamente os tributos sobreviventes nos meus dedos. O garoto do 1, ambos do 2, Foxface, ambos do 11 e 12. Somente oito de nós. As apostas deviam estar ficando muito quentes na Capital.
Eles farão especiais sobre cada um de nós agora. Provavelmente entrevistarão nossos amigos e familiares. Faz muito tempo desde que um tributo do Distrito 12 chegou ao top oito. E agora há dois de nós. Embora pelo que Cato dissera, Peeta está prestes a sair. Não que Cato seja o especialista em qualquer coisa. Ele não tinha acabado de perder seu estoque inteiro de suprimentos?
Que comece o septuagésimo quarto Jogos Vorazes, Cato, eu penso. Que ele comece de verdade.
Uma brisa gelada surgiu. Procuro meu saco de dormir antes de lembrar que eu o deixei com Rue. Eu devia pegar outro, mas com as minas e tudo, esqueci. Começo a tremer. Já que pernoitar durante a noite em uma árvore não é sensato, de qualquer forma, eu afundo em um buraco sob os arbustos e me cubro com folhas de pinheiros. Ainda estou congelando. Estendo minha coberta de plástico sobre a parte superior do meu corpo e posiciono minha mochila para bloquear o vento. É um pouco melhor. Eu começo a ter mais simpatia pela garota do Distrito 8 que acendeu uma fogueira naquela primeira noite.
Mas agora sou eu quem precisa cerrar meus dentes e aguentar até de manhã. Mais folhas, mais folhas de pinheiro. Eu enfio meus braços dentro da minha jaqueta e puxo meus joelhos até meu peito. De algum modo, eu adormeço.
Quando abro meus olhos, o mundo parece ligeiramente fraturado, e levo um minuto para perceber que o sol deve estar bem acima e que os óculos fragmentam minha visão.
Enquanto sento e removo-os, ouço uma risada em algum lugar perto do lago e congelo. A risada está distorcida, mas o fato de que ela é registrada significa que eu devo estar recuperando minha audição. Sim, meu ouvido direito consegue escutar novamente, apesar de estar zumbindo. Quanto ao ouvido esquerdo, pelo menos o sangramento parou.
Eu espio entre os arbustos, com medo de que os Carreiristas tenham retornado, me prendendo aqui por um tempo indefinido. Não, é Foxface, de pé nos escombros da pirâmide e rindo. Ela é mais esperta que a maioria dos Carreiristas, realmente achando alguns itens úteis nas cinzas. Um pote de metal. A lâmina de uma faca. Estou perplexa por seu divertimento até que percebo que com as provisões dos Carreiristas eliminadas, ela realmente pode ter uma chance. Exatamente como o resto de nós.
Passa pela minha cabeça me revelar recrutá-la como uma segunda aliada contra o bando. Mas eu descarto. Há algo naquele sorriso astucioso que me faz ter certeza que ao fazer amizade com a Foxface, eu iria no fim ganhar uma facada pelas costas.
Com isso em mente, essa pode ser uma ótima hora para atirar nela. Mas ela ouviu algo, não eu, porque sua cabeça vira para longe, na direção da declinação, e ela corre a toda velocidade para a floresta.
Eu espero. Ninguém, nada aparece. Ainda assim, se a Foxface achou que era perigoso, talvez seja hora de eu sair daqui também. Além do mais, estou ansiosa para contar a Rue sobre a pirâmide.
Já que eu não faço ideia sobre onde os Carreiristas estão, a rota de volta pelo riacho parece tão boa quanto qualquer outra. Eu me apresso, arco carregado em uma mão, um pedaço grande de groosling frio na outra, porque eu estou esfomeada agora, e não só de folhas e bagas, mas de gordura e proteína da carne.
A viagem para o riacho é rotineira. Uma vez lá, eu reencho minha água e me limpo, tomando um cuidado particular com meu ouvido machucado. Então viajo colina acima usando o riacho como guia.
Uma hora, eu acho pegadas de botas na lama pela margem. Os Carreiristas estiveram aqui, mas faz tempo. As pegadas são profundas porque foram feitas na lama fofa, mas agora elas quase secaram no sol quente. Eu não fui cuidadosa o bastante quanto ao meu próprio rastro, contando com uma pegada leve e as folhas de pinheiro para esconder meus passos. Agora retiro minhas botas e meias e fico descalça no leito do riacho.
A água gelada tem um efeito revigorante no meu corpo, no meu espírito. Eu capturo dois peixes, presas fáceis nesse riacho vagaroso, e vou e como um cru, apesar de ter acabado de comer o groosling. O segundo eu salvo para Rue.
Gradualmente, sutilmente, o zumbido no meu ouvido direito diminuiu até que vai embora inteiramente. Eu me acho tocando a minha orelha esquerda periodicamente, tentando afastar o que quer que enfraqueça sua habilidade de coletar sons. Se há alguma melhora, não é detectável. Não consigo me ajustar à surdez. Isso me faz sentir desequilibrada e indefesa na minha esquerda. Até mesmo cega. Minha cabeça fica virando para o lado machucado, enquanto minha orelha direita tenta compensar pela parede de nada onde ontem havia um fluxo constante de informação. Quanto mais o tempo passa, menos esperança eu tenho de que esse é um machucado que irá sarar.
Quando alcanço o local do nosso primeiro encontro, tenho certeza de que não foi violado. Não há sinal da Rue, no chão ou nas árvores. Isso é estranho. Ela já devia ter retornado, já que é meio dia.
Indubitavelmente, ela passou a noite numa árvore em algum lugar. O que mais ela poderia fazer sem luz e com os Carreiristas com seus óculos de visão noturna vagueando pela floresta? E a terceira fogueira que ela devia acender – apesar de eu ter esquecido de procurá-la na noite passada – era a mais distante do nosso local. Ela provavelmente só está sendo cuidadosa ao voltar.
Eu gostaria que ela se apressasse, porque não quero ficar andando por aqui por muito tempo. Eu quero passar a tarde viajando para terrenos mais altos, caçando pelo caminho. Mas não há realmente nada para eu fazer exceto esperar.
Lavo o sangue da minha jaqueta e cabelo e limpo minha crescente lista de ferimentos. As queimaduras estão muito melhores, mas coloco um pouco de remédio nelas de qualquer modo. A coisa principal a se preocupar agora é impedir a infecção de se espalhar. Eu vou em frente e como o segundo peixe. Ele não vai durar muito no sol quente, mas deve ser fácil o bastante pegar alguns mais com uma lança para a Rue. Se ela apenas aparecesse.
Me sentindo muito vulnerável no solo com a minha audição desequilibrada, eu escalo uma árvore para esperar. Se os Carreiristas aparecerem, esse será um bom lugar para atirar neles.
O sol se move lentamente. Eu faço coisas para passar o tempo. Mastigo folhas e aplico-as às minhas picadas, que estão reduzidas, mas ainda delicadas. Penteio meu cabelo úmido com meus dedos e faço uma trança. Enlaço minhas botas. Checo meu arco e minhas nove flechas restantes. Testo meu ouvido esquerdo repetitivamente por sinais de vida ao farfalhar uma folha perto dele, mas sem bons resultados.
Apesar do groosling e do peixe, meu estômago está rosnando, e sei que vou ter o que chamamos de dia vazio lá no Distrito 12. Esse é um dia onde não importa o que você coloca na sua barriga, nunca é o bastante. Não ter nada a fazer exceto sentar em uma árvore piora, então eu decido desistir. Afinal de contas, eu perdi muito peso na arena, preciso de algumas calorias extras. E ter o arco e as flechas me deixa muito mais confiante sobre meus prospectos futuros.
Eu lentamente descasco e como um punhado de nozes. Minha última bolacha. O pescoço do groosling. Isso é bom porque leva tempo para limpar. Finalmente, uma asa de groosling e o pássaro é história. Mas é um dia vazio, e mesmo com tudo isso eu começo a sonhar acordada com comida. Particularmente com os pratos imorais servidos na Capital. O frango no molho cremoso de laranja. Os bolos e pudins. Pão com manteiga. Macarrão com molho verde. O carneiro e guisado de ameixa seca. Chupo algumas folhas de menta e digo a mim mesma para superar isso. A menta é boa porque geralmente bebemos chá de menta após o jantar, então engana o meu estômago, fazendo-o pensar que a hora de comer passou. Mais ou menos.
Pendurada na árvore, com o sol me esquentando, um punhado de menta, meu arco e flechas a mão... esse é o mais perto de relaxar que eu estive desde que entrei na arena. Se apenas a Rue aparecesse, e nós pudéssemos ir embora.
À medida que as sombras crescem, minha inquietação crescia também. Ao fim da tarde, resolvo ir procurá-la. Eu posso, pelo menos, visitar o local onde ela acendeu a terceira fogueira e ver se há alguma pista sobre seu paradeiro. Antes que eu vá, espalho algumas folhas de menta ao redor da nossa velha fogueira de acampamento. Já que as coletamos a uma boa distância, Rue entenderá que eu estive aqui, enquanto elas não significariam nada para os Carreiristas.
Em menos de uma hora, estou no lugar onde concordamos em acender a terceira fogueira e sei que algo deu errado. A madeira fora arrumada primorosamente, espalhada habilidosamente com estopim, mas nunca fora acessa. Rue montou a fogueira, mas nunca voltou aqui. De algum modo entre a segunda coluna de fumaça que eu espiei antes de explodir os suprimentos e esse local, ela se encrencou.
Tenho que me lembrar que ela ainda está viva. Ou não está? Será que houve um tiro do canhão anunciando sua morte nas horas matinais quando até mesmo o meu bom ouvido estava danificado demais para captar? Ela aparecerá no céu hoje à noite? Não, eu me recuso a acreditar nisso. Poderia haver uma centena de outras explicações. Ela poderia ter se perdido. Encontrado um bando de predadores ou outro tributo, como Thresh, e teve que se esconder. O que quer que tenha acontecido, tenho quase certeza de que ela está presa em algum lugar, em algum lugar entre a segunda fogueira e a não acesa aos meus pés. Algo está mantendo-a em cima de uma árvore.
Eu acho que vou caçá-lo.
É um alívio estar fazendo algo após sentar por toda à tarde. Eu me arrasto silenciosamente pelas sombras, deixando-as me esconderem. Mas nada parece suspeito. Não havia sinal de nenhum tipo de luta, nenhum rompimento de folhas no chão. Eu paro por apenas um momento quando ouço. Tenho que inclinar minha cabeça para o lado para ter certeza, mas ali está ele de novo. A canção de quatro notas da Rue saindo da boca de um mockingjay. Aquela que quer dizer que ela está bem.
Eu sorrio e me movo na direção do pássaro. Outro, a apenas uma pequena distância, pega o punhado de notas. Rue estivera cantando para eles, e recentemente. De outro modo, eles teriam pego outra canção. Meus olhos se levantam para as árvores, procurando por um sinal dela. Eu engulo em seco e canto suavemente de volta, esperando que ela saiba que é seguro se juntar a mim. Um mockingjay repete a melodia para mim. E é aí que eu ouço o grito.
É o grito de uma criança, o grito de uma menina, não há ninguém na arena capaz de fazer esse som exceto Rue. E agora eu estou correndo, sabendo que isso pode ser uma armadilha, sabendo que os três Carreiristas podem estar aprumados para me atacar, mas não consigo evitar.
Há outro grito agudo, dessa vez o meu nome.
— Katniss! Katniss!
— Rue!  grito de volta, para que ela saiba que estou por perto.
Então, eles sabem que estou por perto, e com sorte a garota que os atacou com as teleguiadas e tirou um onze que eles ainda não conseguem explicar será o bastante para tirar a atenção deles dela.
— Rue! Estou indo!
Quando eu chego na clareira, ela está no chão, irremediavelmente presa numa rede. Ela só tem tempo de esticar sua mão pela rede e dizer meu nome antes que a lança entre em seu corpo.
O garoto do Distrito 1 morre antes que possa arrancar a lança. Minha flecha entra no centro do seu pescoço. Ele cai de joelhos e divide o breve resto da sua vida em tirar a flecha e se afogar em seu próprio sangue. Eu carrego novamente, movendo minha mira de um lado para o outro, enquanto grito para Rue:
— Há mais? Há mais?
Ela tem que dizer várias vezes antes de eu ouvir.
Rue rolou de lado, seu corpo curvado para dentro e ao redor da lança. Empurro o garoto para longe dela e puxo minha faca, libertando-a da rede. Uma olhada na ferida e sei que está além da minha capacidade de curar, além da de qualquer um, provavelmente. A ponta da lança está enterrada até o cabo em seu estômago. Eu me encolho ante a ela, encarando desamparadamente a arma cravada. Não há sentido em palavras de conforto, em dizer a ela que ela ficará bem. Ela não é tola. Sua mão se estende e a agarro como se fosse a linha da vida. Como se fosse eu que estivesse morrendo em vez dela.
— Você explodiu a comida?  ela sussurra.
— Cada pedaço  digo.
— Você tem que ganhar  diz.
— Eu vou. Vou ganhar por nós duas agora  prometo.
Ouço um canhão e olho para cima. Deve ser pelo garoto do Distrito 1.
— Não vá  Rue aperta sua mão na minha.
— Claro que não. Estou bem aqui.
Eu me aproximo dela, puxando sua cabeça para o meu colo. Gentilmente afago o cabelo grosso e escuro atrás de seu ouvido.
— Cante  ela diz, mas eu mal capturo a palavra.
Cantar? Penso. Cantar o quê? Sei algumas músicas. Acredite ou não, havia música na minha casa também. Músicas que eu ajudei a escrever. Meu pai me pressionava com aquela voz notável – mas não canto desde sua morte. Exceto quando Prim está muito doente. Então canto para ela as mesmas músicas que ela gostava quando bebê.
Cantar. Minha garganta está apertada com as lágrimas, rouca por causa da fumaça e fatigada. Mas se esse é o último pedido de Prim, quer dizer, de Rue, tenho que ao menos tentar. A música que vem para mim é uma canção de ninar simples, uma que cantamos para bebês irritados e famintos dormirem. É velha, muito velha, acho. Feita há muito tempo em nossas colinas. O que meu professor de música chama de ar da montanha. Mas as palavras são fáceis e suaves, prometendo que o amanhã será mais promissor que esse terrível pedaço de tempo que chamamos de hoje.
Dou uma pequena tosse, limpo a garganta, e começo:


Bem no fundo da campina, embaixo do salgueiro
Um leito de grama, um macio e verde travesseiro
Deite a cabeça e feche esses olhos cansados
E quando se abrirem, o sol já estará no alto dos prados

Aqui é seguro, e aqui é um abrigo
Aqui as margaridas te protegem de todo perigo
Aqui seus sonhos são doces
E amanhã serão lei
Aqui é o lugar onde sempre lhe amarei

Os olhos de Rue se fecharam. Seu peito se move, mas apenas suavemente. Minha garganta libera as lágrimas e elas descem pelas minhas bochechas. Mas tenho que terminar a música por ela.


Bem no fundo da campina, bem distante
Num maço de folhas, brilha o luar aconchegante
Esqueça suas tristezas e aquele problema estafante
Porque quando amanhecer de novo ele não será mais tão pujante

Aqui é seguro, e aqui é um abrigo
Aqui as margaridas te protegem de todo perigo

As linhas finais mal são audíveis.


Aqui seus sonhos são doces
E amanhã serão lei
Aqui é o lugar onde sempre lhe amarei

Tudo está parado e quieto. Então, de modo quase assustador, os mockingjays recolhem minha música.
Por um momento, fico sentada lá, observando minhas lágrimas caírem em seu rosto. O canhão de Rue dispara. Eu me inclino para frente e pressiono meus lábios contra sua testa. Devagar, como se para não acordá-la, deito sua cabeça no chão e libero sua mão.
Eles vão querer que eu saia daqui. Assim eles podem coletar os corpos. E não há nada pelo que ficar. Viro o garoto do Distrito 1 sob seu rosto e pego sua mochila, retomo a flecha que acabou com sua vida. Corto da mochila de Rue de suas costas também, sabendo que ela iria querer que eu a pegasse, mas deixasse a lança em seu estômago. Armas nos corpos serão transportadas para o aerobarco. A lança não tem nenhuma utilidade para mim, então quanto mais cedo ela se for, melhor.
Não posso parar de olhar para Rue, menor do que nunca, um filhote encolhido num ninho. Não posso deixá-la assim. Passado o dano, mas parecendo completamente indefesa. Odiar o garoto do Distrito 1, que também parece tão vulnerável na morte, parece impróprio. É a Capital que eu odeio, por fazer isso com todos nós.
A voz de Gale está na minha cabeça. Sua fúria contra a Capital não mais à toa, não mais para ser ignorada. A morte de Rue me forçou a confrontar minha própria fúria contra a crueldade, a injustiça a qual eles nos infligem. Mas aqui, mesmo mais forte do que em casa, sinto minha impotência. Não há como ter vingança contra o Capital. Há?
Então me lembro das palavras de Peeta no terraço. “Só continuo desejando que eu pudesse pensar num modo de... mostrar a Capital que eles não são donos de mim. Que eu sou mais que uma peça em seus Jogos”.
E pela primeira vez, compreendo o que ele quis dizer.
Eu quero fazer alguma coisa, aqui, agora, para envergonhá-los, para responsabilizá-los, para mostrar a Capital que não importa o que eles nos forcem a fazer existe uma parte de cada tributo que eles não podem comandar. Que Rue foi mais que uma peça em seus Jogos. E eu também.
Começo a recolher flores, arrumando ao redor dela como em um jardim. Rue parece estar dormindo em uma cama perfumada.
Eles vão ter que exibir isso. Ou, mesmo que eles escolham virar as câmeras para outro lugar nesse momento, eles vão ter que trazê-las de volta quando coletarem seus corpos e todos a verão, então e saberão que fui eu que fiz. Dou um passo para trás e dou uma última olhada para Rue. Ela realmente poderia estar dormindo na campina, apesar de tudo.
— Tchau, Rue  sussurro.
Pressiono os três dedos do meio da minha mão esquerda contra meus lábios e estendo-os em sua direção. Então me afasto sem olhar para trás.
Os pássaros estão silenciosos. Em algum lugar, um mockingjay dá o assobio de aviso que precede um aerobarco. Não sei como ele sabe. Deve ouvir coisas que os humanos não podem. Eu paro, meus olhos focados no que está adiante, não no que está acontecendo atrás de mim. Não leva muito tempo, e a usual música dos pássaros recomeçam e sei que ela se foi.
Outro mockingjay, um jovem pelo que parece, pousa num galho ante a mim e irrompe na melodia de Rue. Minha música, o aerobarco, eram estranhas demais para esse novato pegar, mas ele dominou um punhado de suas notas. As que dizem que está a salvo.
— Sã e salva  digo enquanto passo por baixo do galho. — Não temos de nos preocupar com ela agora.
Sã e salva.
Não tenho ideia de onde ir. A breve sensação de lar que tive naquela noite com Rue sumiu. Meus pés vagam por aqui e acolá até pôr-do-sol. Não estou com medo, nem mesmo alerta. O que me faz um alvo fácil. Exceto que matarei qualquer um que eu encontrar agora. Sem emoção ou o mais suave tremor em minhas mãos. Meu ódio pela Capital não diminuiu nem um pouco meu ódio pelos competidores. Especialmente pelos Carreiristas. Eles, pelo menos, podem pagar pela morte de Rue.
Ninguém se materializa, entretanto. Não há muito de nós e é uma grande arena. Em breve eles serão empurrados por alguma armadilha para nos forçar a nos juntar. Mas houve bastante sangue hoje. Talvez nós consigamos dormir.
Estou puxando minha mochila numa árvore para acampar quando um paraquedas prateado cai ante a mim. Um presente dos patrocinadores. Mas por que agora? Estou em uma boa condição de suprimentos. Talvez Haymitch tenha notado meu desânimo e está tentando me animar um pouco. Ou pode ser algo para ajudar meu ouvido?
Abro o paraquedas e encontro um pequeno pão. Não é o pão branco e suave da Capital. É feito de grão de ração escura e em forma de um crescente. Polvilhado com sementes. Eu relembro a lição de Peeta sobre os vários pães dos distritos no Centro de Treinamento. Esse pão veio do Distrito 11. Eu cuidadosamente levando o pão ainda quente. Quanto deve custar para as pessoas do Distrito 11, que não podem nem mesmo se alimentarem? Quantos devem ter dado uma moeda para juntar o suficiente por esse pão?
Isso é por Rue, certamente. Mas em vez de perder o presente quando ela morreu, eles autorizaram Haymitch a dá-lo para mim. Como um agradecimento? Ou porque, como eu, eles não gostem de débitos? Por qualquer razão, esse é o primeiro. Um presente de um distrito para um tributo que não é dos seus.
Levanto meu rosto e dou um passo para os últimos raios de luz do pôr-do-sol.
— Meu obrigado para as pessoas do Distrito Onze  digo.
Quero que eles saibam que sei de onde veio. Que todo o valor do presente foi reconhecido.
Subo perigosamente alto na árvore, não por segurança, mas para ficar tão longe quanto posso. Meu saco de dormir está dobrado de modo organizado na mochila da Rue. Amanhã vou ordenar os suprimentos. Amanhã vou fazer um novo plano. Mas hoje à noite, tudo que posso fazer é me segurar e comer alguns pedaços de pão. É bom. Tem gosto caseiro.
Logo o sinal está no céu, e o hino toca no meu ouvido direito. Vejo o garoto do Distrito 1. Rue.
É tudo por essa noite. Sobraram seis de nós, penso. Apenas seis. Com o pão ainda preso em minhas mãos, eu caio no sono imediatamente.
Às vezes, quando as coisas estão particularmente ruins, meu cérebro me dá um sonho feliz. Uma visita do meu pai na floresta. Uma hora de luz do sol e bolo com Prim. Hoje a noite me dá Rue, ainda enfeitada com suas flores, empoleirada no alto mar de árvores, tentando me ensinar como conversar com os mockingjays. Não vejo nenhum sinal de suas feridas, nenhum sangue, apenas uma garota brilhante e risonha. Ela canta músicas que nunca ouvi numa voz melódica e clara. Continuamente. Através da noite.
Há um período sonolento no qual posso ouvir as últimas notas de sua música embora ela esteja perdida nas folhas. Quando acordo, estou momentaneamente confortada. Tento segurar a sensação pacífica do sonho, mas ela rapidamente desaparece, deixando-me mais triste e sozinha que nunca.
Lentidão impregna todo meu corpo, como se houvesse líquido em minhas veias. Perdi a vontade de fazer até as tarefas mais simples, para fazer nada além de deixar aqui, encarando cegamente a cobertura de folhas. Por algumas horas, permaneço sem me mover. Como sempre, é o pensamento do rosto ansioso de Prim enquanto ela me assiste nas telas em casa que me tira da letargia.
Eu me dou uma série de comandos simples a seguir, como “Agora você tem de se sentar, Katniss. Agora você tem de beber água, Katniss.” Obedeço as ordens com movimentos lentos e robóticos. “Agora você tem de ordenar as bolsas, Katniss.”
Na bolsa de Rue está o meu saco de dormir, seu quase vazio odre de água, um punhado de nozes e raízes, um pedaço do coelho, suas meias extras e munição. O garoto do Distrito 1 tem algumas facas, duas pontas de lança de reposição, uma lanterna, uma pequena bolsa de couro, um estojo de primeiros socorros, uma garrafa cheia de água e um pacote de frutas secas. Um pacote de frutas secas! De tudo que ele poderia ter escolhido. Para mim, esse é um sinal de extrema arrogância. Por que se incomodar em carregar comida quando você tem tal generosidade de volta ao acampamento? Quando você vai matar seus inimigos tão rapidamente que você estará de volta a casa antes de ficar com fome? Posso apenas esperar que os outros Carreiristas se preocupem tão pouco com comida e agora se encontrem sem nada.
Falando nisso, meus próprios suprimentos estão baixos. Termino o pão do Distrito 11 e o resto do coelho. Como começou, desapareceu rápido. Tudo que restou são as raízes e nozes de Rue, as frutas secas do garoto, e um pedaço de bife. Agora você tem de caçar, Katniss, digo a mim mesma.
Obedientemente guardo os suprimentos que quero na minha bolsa. Depois de descer da árvore, escondo as facas e as pontas de lança do garoto numa pilha de pedras para que ninguém mais possa usá-las. Perdi meu rumo com toda a perambulação que fiz ontem de tarde, mas tento e volto na direção do riacho. Sei que estou no curso quando passo pela terceira fogueira apagada de Rue. Pouco depois, descubro um grupo de pássaros empoleirado nas árvores e consigo tomar três antes de eles perceberem o que os atingiu. Retorno para o sinal de fogo de Rue e acendo-o, não me importando com a fumaça excessiva. Onde você está, Cato? Penso enquanto asso os pássaros e as raízes de Rue. Estou esperando bem aqui.
Quem sabe onde os Carreiristas estão agora? Muito longe para me alcançar ou muito certos de que esse é um truque ou... é possível? Muito apavorados comigo? Eles sabem que eu tenho um arco e flechas, é claro, Cato me viu tirá-los do corpo de Glimmer, mas eles já somaram dois mais dois? Descobriram que eu explodi os suprimentos e matei o companheiro Carreirista deles? Possivelmente eles acham que Thresh fez isso. Seria mais fácil ele vingar a morte de Rue do que eu? Sendo do mesmo distrito? Não que ele já teve algum interesse nela.
E Foxface? Ela estava por ali para me observar explodir os suprimentos? Não. Quando a peguei rindo nas cinzas na manhã seguinte, foi como se alguém tivesse dado a ela uma linda surpresa.
Duvido que eles pensem que Peeta acendeu esse sinal de fogo. Cato está certo de que ele está morto. Encontro-me desejando poder contar a Peeta sobre as flores que coloquei sobre Rue. Que agora entendo o que ele estava tentando dizer no telhado. Talvez se ele ganhar os Jogos, me verá na noite do vencedor, quando exibirem novamente os destaques dos Jogos na tela sobre o palco onde fizemos nossas entrevistas. O ganhador se senta num lugar de honra na plataforma, rodeado por sua equipe de suporte.
Mas eu falei para Rue que eu estaria lá. Por nós duas. E de alguma forma, isso parece até mais importante que a promessa que fiz a Prim.
Eu realmente penso que tenho uma chance de fazer agora. Ganhar. Não só por ter flechas e ser mais inteligente que os Carreiristas algumas vezes, embora essas coisas ajudem. Às vezes acontece quando eu estava segurando a mão de Rue, observando a vida ser drenada dela. Agora estou determinada a vingá-la, a fazer sua perda inesquecível, e posso apenas fazer isso ganhando e através disso me fazendo inesquecível.
Eu asso demais os pássaros esperando que alguém apareça para atirar, mas ninguém aparece. Talvez os outros tributos estejam por aí batendo em alguém até a morte. O que seria bom. Desde o banho de sangue, eu fui apresentada nas telas mais do que me importaria.
Eventualmente, guardo minha comida e volto ao riacho para tornar a encher meu odre e tomar alguma água. Mas a indolência da manhã volta e embora seja apenas o início da tarde, subo numa árvore e me organizo para a noite. Meu cérebro começa a repetir os eventos de ontem. Continuo vendo Rue ser furada com a lança, minha flecha atingindo o pescoço do garoto. Não sei nem por que eu me importo com o garoto.
Então percebo... ele foi a primeira pessoa que matei.
Junto com outras estatísticas que eles reportam para ajudar as pessoas a escolher suas apostas, cada tributo tem uma lista de mortes. Acho que tecnicamente tenho crédito por Glimmer e pela garota do Distrito 4, também, por derrubar o ninho sobre elas. Mas o garoto do Distrito 1 foi a primeira pessoa que eu sabia que morreria pelas minhas ações. Numerosos animais perderam suas vidas pelas minhas mãos, mas apenas um humano. Ouço Gale dizendo, “Que diferença pode ser, realmente?”
Incrivelmente similar na execução. Um arco puxado, uma flecha atirada. Inteiramente diferente nas consequências. Matei o garoto cujo nome nem mesmo sei. Em algum lugar sua família está chorando por ele. Seus amigos clamam por meu sangue. Talvez ele tenha uma namorada que realmente acreditava que ele retornaria...
Mas então penso no corpo imóvel de Rue e sou capaz de banir o garoto da minha mente. Ao menos, por hora.
Foi um dia sem ocorrências de acordo com o céu. Sem mortes. Pergunto-me quanto tempo teremos até a próxima catástrofe nos reunir novamente. Se for essa noite, quero dormir um pouco primeiro. Cubro meu ouvido bom para bloquear as notas do hino, e então ouço as trombetas e me sento ereta em antecipação.
Na maioria, a única comunicação que os tributos têm de fora da arena é o número de mortos noturno. Mas ocasionalmente, há trombetas que seguem um anúncio. Usualmente, isso seria uma chamada para uma ceia. Quando comida é escassa, os Gamemakers convidam os jogadores a um banquete, em algum lugar conhecido como Cornucópia, como uma persuasão para juntar e lutar. Algumas vezes há uma ceia e outras nada além de um naco de pão velho pelo qual os tributos competem. Eu não iria por comida, mas esse seria a hora ideal para matar alguns competidores.
A voz de Claudius Templesmith ruge de cima, congratulando os seis de nós que restam. Mas ele não está nos convidando para um banquete. Ele está dizendo algo muito confuso. Houve uma mudança nas regras dos Jogos.
Uma mudança nas regras! Isso por si só pode levar a reflexão, visto que não temos realmente alguma regra para falar, exceto não pisar fora do seu círculo por sessenta segundos e a regra tácita de não comer uns aos outros.
Sob uma nova regra, ambos os tributos do mesmo distrito serão declarados vencedores se forem os últimos vivos. Claudius dá uma pausa, como se ele soubesse que nós não entendemos, e repete a mudança de novo.
A novidade é captada. Dois tributos podem vencer esse ano. Se eles foram do mesmo distrito. Ambos podem viver. Dois de nós podem viver. Antes que eu possa me conter, grito o nome de Peeta.


"Retirado do blog Livros On-Line, Grato pela disponibilização do conteúdo"